quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A palavra do tempo

John Yardley - Bologna Side Street

Estou sentado e vejo o tempo passar. Perde os contornos, desfigura-se, arrasta consigo quem vai, as casas, os carros. O tempo inunda os meus olhos de desfiguração. Um dia foram tão precisos e agora... Bem, agora os meus olhos contam-me outra história do mundo, uma história vista com os olhos do tempo, um fluxo interminável de perda de fronteiras. Aquele casal é já uma névoa e o grande edifício abre-se para mim na vitória dos escombros, também eles entregues à anarquia da poeira. Tremo se olho para as minhas mãos. Tremo se a a memória me assalta. O tempo fala dentro de mim e eu sou apenas a imprecisão de um fluxo, a sombra delida que, em desespero, se agarra ao fetiche de um nome, como se as palavras não fossem vento no silêncio do tempo que passa.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O bosque obscuro

Valentín Albardíaz - Bosque Oscuro VII (1994)

Na Idade Média ainda era possível descrever a experiência mística a partir da metáfora do bosque deleitoso. Os prazeres que se abriam aí à experiência da humanidade foram-se, com o advento e progresso da Idade Moderna e a propensão desta para a acção, tornando cada vez mais estranhos. O apelo a uma vida que esteja para lá da acção, uma vida de reflexão e de contemplação, implica ainda, nos dias de hoje, a entrada no bosque, mas de um bosque obscuro, tal a desconfiança que tudo isto provoca na mentalidade dos homens modernos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Encontrar a vida

Maurice Denis - Orpheus and Eurydice (1910)

Como todos os mitos, o de Orfeu e de Eurídice presta-se a interpretações múltiplas e diferenciadas. Podemos, por exemplo, pensar que Orfeu desce ao reino da morte para resgatar a sua própria alma, o seu princípio de vida que estaria morto pelo envolvimento na vida quotidiana. O que o mito nos diz, então, não é que o homem não pode olhar esse princípio - a alma - que o constitui. Diz-nos antes que não o pode contemplar em qualquer lugar e movido por qualquer desejo de certificação. Todo aquele que quer assegurar-se da sua vida já a perdeu. Só quem abandonar qualquer desejo de segurança e de certeza poderá encontrar essa mesma vida.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (264)

Edvard Munch - Winter Night (1900)

as noites de inverno
descem frias sobre a floresta
neve e solidão

domingo, 27 de dezembro de 2015

Tornar-se ausente

Eloisa Sanz - Ausência (1991)

Há um momento na vida dos homens em que o tornar-se presente - nos lugares que se pensam como significativos - é o seu grande desejo. A presença é um sintoma de que se é alguma coisa, a expressão do desejo de reconhecimento.  A generalidade só desiste de tornar-se presente quando percebe que não tem o poder suficiente para se impor ao mundo e aos outros. O viandante, porém, recusa a ilusão da presença. A sua viagem e a sua vida é um contínuo tornar-se ausente, um abandono persistente dos lugares da existência e de qualquer pretensão ao reconhecimento, um tornar-se nada no exercício da ausência.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Lugares negros


Georgia O'keeffe - Black Place III (1944)


A relação entre a vida espiritual e os lugares negros é central. Por lugar negro deve-se entender qualquer lugar onde o espírito não penetrou. O trabalho do espírito não é outro senão fazer com que a luz resplandeça nas trevas, mesmo que estas não compreendam a luz e não a reconheçam.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (263)

George Inness - Evening Landscape (1862)

sombra pura sombra
a noite cai sobre a terra
os pássaros cantam

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Um jogo rítmico

José de Togores - Figura escondendo-se (1925)

A viagem espiritual dos homens é marcada por um jogo de ocultações e de manifestações. Por vezes, o espírito necessita de se esconder e nessa ocultação encontrar a energia, a força e a substância que levarão à sua manifestação. Ocultar-se não significa um puro desaparecimento, mas um momento em que o espírito se prepara para trazer ao mundo o inesperado, o inaudito e o inédito.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 12

Ignacio Díaz Olano - Desnudo (1895)

12. A luz que te toca

A luz que te toca
na sombra do dia
enche-me os olhos
com uma promessa
pura e fugidia.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Tagarelice

Giulio Rosati - Bavardages

A tagarelice é uma forma de construir comunidade, de pôr em comum, fundada naquilo que é, aparentemente, fútil. Esta forma ligeira de partilha não deve ser rejeitada liminarmente, pois ela corresponde à nossa efectiva condição. Os homens não são deuses, nem anjos, nem, em geral, filósofos que se entreguem à resolução especulativa dos mais intrincados problemas colocados pela razão. Tagarelar com os que nos são próximos ou com os que se aproximam de nós não é um mal em si mesmo. O perigo nasce apenas se esse tagarelar se torna um exercício infinito de alienação e não permite ao homem confrontar-se com o mistério que o constitui e que se esconde, muitas vezes, sob a pressão de uma tagarelice sem fim.

domingo, 20 de dezembro de 2015

A minha casa

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Desenhei a casa na esperança de nela poder vir a viver. O tempo passou e a casa, primeiro vazia, foi ocupada por uma estranha mulher. Sentava-se na varanda e fechava os olhos. Sonhava, dizia-se nas redondezas. As tardes declinavam e quando a noite caía sobre a terra, ela entrava na casa e fechava a porta. O que se passava lá dentro, ninguém sabia. Talvez apenas os afazeres domésticos. Quando a luz da manhã voltava, ela abria as janelas. Chegada a tarde, tornava à varanda, sentava-se e de olhos fechados deixava a luz dançar sobre si. Sonhava. Uma tarde, do seu sonho, nasceu uma figura. Primeiro, era apenas uma sombra volátil. Ela, porém, não abriu os olhos. Com o passar do tempo, a sombra ganhou contornos nítidos, definiu as formas, tomou cores, alcançou substância. Por fim a sombra do seu sonho, agora dotada de voz, disse: esta é a minha casa. Fui eu que a desenhei e esperava-me dentro de ti.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Da metamorfose

Brull Carreras - Metamorfose

Metamorfose. Mudar de forma. Tornar-se outro. A metanóia, a conversão, não é apenas uma transformação de comportamento ou de carácter. É um exercício de alteridade, de tornar-se outro, de deixar de ser o que se é e passar a ser outro. Não o outro estranho a si, o outro alienado e perdido, mas esse outro que é o caminho para  si mesmo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A promessa

Umberto Boccioni - Manhã (1909)

Quando a luz matinal chega tudo parece possível. A manhã irrompe sempre como uma promessa excessiva. A sabedoria não está em querer que essa promessa se cumpra, mas em saber como adaptar-se à realidade e à desilusão que a passagem das horas sempre traz consigo. A sabedoria está em saber ler o excesso mesmo nas promessas mais sedutoras.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Pontos de referência

Laurence Stephen Lowry - A Landmark (1936)

Primeiro o homem recebe um ponto de referência e guia a viagem por ele. A seguir, perde o norte e erra pelos caminhos sem querer saber de pontos de referência ou de marcos geodésicos. Depois, exausto da errância, procura um novo ponto de referência. Quando o encontra sente a tranquilidade de ter um guia que evita o perigo da perda, não suspeitando que corre agora o maior dos perigos, o de se crer numa viagem serena e segura. Alguns, porém, descobrem o ardil e abandonam toda a esperança de ter um ponto de referência que os guie. Nesse momento, deram o primeiro passo na viagem.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (262)

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

árvores de outono
erguidas sobre as águas
tempo de silêncio

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Da condição humana

Odilon Redon - O prisioneiro

Todos as pessoas nascem livres e iguais... Assim começa a declaração dos direitos do homem. Talvez fosse mais ajustado dizer Todas as pessoas nascem igualmente prisioneiras. O que se ganharia com isso? Trocar-se-ia uma liberdade dada como um facto, por um processo de libertação. A vida espiritual não é outra coisa senão o processo pelo qual o espírito quebra as cadeias que herdámos ao nascer. A liberdade não é um facto, mas um acto onde o homem, pela vida espiritual, se liberta da servidão - a dura necessidade imposta pelo corpo - que o nascer traz consigo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Poemas do Viandante (521)

Amadeo de Souza Cardoso - Composição Abstracta - Estudo B (1913)

521. Círculos, cores abstracções

Círculos, cores, abstracções.
Com eles componho um mundo, 
invento cidades e desertos,
traço mesmo um barco
a naufragar no mar sem fundo.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Música e literatura

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O que distingue a música da literatura? Na música, o espírito infinito e intemporal entra no tempo e derrama-se sobre os homens, iluminando-os através do som. Na literatura, o espírito finito e temporal narra a sua errância no espaço e no tempo. Por vezes, fala da nostalgia daquilo que está para além da finitude e da temporalidade, mas a literatura é sempre física, enquanto a música é uma metafísica em acto.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (261)

Vincent Van Gogh - Campo de trigo com ciprestes (1889)

o trigo ondula
sob a sombra dos ciprestes
silêncio nos céus

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Música e vento

James Abbott McNeill Whistler - At the piano (1858-59)

Os dedos, os dedos dela são tão leves, folhas que caem sobre a água. Levantarei, também eu, voo um dia? Vestida de negro, ela vem e poisa diante do piano Depois, o tempo pára e a música vem até mim, entra-me pelos olhos e enche-me o peito, enquanto vejo os dedos deslizarem nas teclas e o mundo começa a dissolver-se. Quero falar, mas ela fechou os olhos e tudo é som, uma armadilha onde me sinto cativa, quase louca, como se a minha voz não fosse mais do que a música que solta por aquelas mãos, como se a minha vida estivesse presa entre duas notas. Quero gritar, mas sinto-me emudecida. Ela não pára e tudo em mim é luz. Ergo-me e, imponderável, bato as asas pela primeira vez. Voo e meu corpo é música e vento que se desvanece na janela da noite.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De aparência em aparência

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

O que esconde uma aparência? Outra aparência. E esta uma outra, numa progressão infinita. Cada aparência é uma estação do calvário do espírito. A sua cruz é este ir de aparência em aparência, negando-as e negando-se a si, pois a viagem é infinita e, na verdade, não existe um lugar sólido onde possa repousar eternamente. Não se trata de negar as aparências para encontrar uma realidade. A única realidade é a viagem pelas aparências.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Danos colaterais

Nicanor Piñole - Escuchando la radio

O progresso dos meios de comunicação social representa, ao mesmo tempo, um retrocesso na capacidade do homem comunicar consigo mesmo. O momento decisivo terá sido a rádio. Ela exige um exercício de escuta já completamente alienado, uma escuta totalmente voltada para o exterior, para uma voz que vem de fora e que se sobrepõe à voz interior que habita os homens. Platão, na antiguidade clássica, via o pensamento como um diálogo consigo mesmo. É este diálogo que a comunicação social tem o poder de dinamitar, ao prender a atenção com o que vem de fora e que, pelo poder da técnica, se impõe a uma consciência fascinada. Ler a imprensa, escutar a rádio, ver televisão ou interagir através da internet são progressos civilizacionais, mas não deixam de ter importantes danos colaterais. Entre esses danos encontra-se esse exercício de meditação que consiste no diálogo consigo mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 11

Charles Émile August Duran - Danaë (1900)

11. Desce sobre ti

Desce sobre ti
a luz do Inverno.
E se estas mãos
em fogo te tocam,
tudo se ilumina
como se aqui
nascesse o Verão.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Contrastes simultâneos

Sonia Terk Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Aquilo que para a razão é um escândalo - ser e não ser simultaneamente - é para a experiência do espírito um caminho e uma orientação. Uma orientação que surge como um convite: abandona a razão como guia da experiência. Um caminho que se abre à experiência: experimentar os contrastes simultâneos que, apesar de horrorizarem a razão, nos chamam a vivê-los num para além do discurso e do pensamento.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (260)

Giovanni Fattori - Bosque à beira-mar (1967-72)

azul sobre azul
um bosque entre mar e céu
a terra acordou

sábado, 5 de dezembro de 2015

O devaneio do voo

Ivonne Sánchez Barea - Voo (2007)

O homem pertence ao elemento sólido. É esta a sua natureza. Ao nadar, pode sobreviver na água. Por muito que se esforce, o homem não pode voar. Para tal precisa de se hibridar e adquirir as próteses que lhe permitam contrariar a gravidade. O voo protésico, porém, não é a realização do devaneio do voo que acomete muitos seres humanos. No sonho do voo, o homem pressente uma outra realidade, uma outra natureza liberta das condições físicas que o prendem ao corpo e, através deste, à matéria. Voar não significa então deslocar-se nos ares, mas antes elevar-se à condição de ser espiritual, para que, como acontece com o vento, possa soprar onde quiser.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Uma descoberta

Eduardo Úrculo Fernández - El descubrimiento (1992)

Hesitou longamente. Esperou que o tempo se suspendesse, que alguma coisa o viesse salvar de uma decisão. A vida pesava-lhe nos ombros e agora que partia, era ainda essa vida que levava consigo, uma vida esquartejada no interior de muitas malas, para que nada lhe faltasse na viagem e no destino que o esperava. Olhava o horizonte, abanava a cabeça e dava alguns passos nervosos para a frente e para trás. Um remoinho descia da cabeça, fazia o sangue fervilhar e, no ventre, abria-se num enorme buraco vazio. O corpo tremia. Largou a bagagem e olhou em frente, deu um passo e outro e outro. As malas começaram a ficar para trás. O corpo tornara-se leve. Pela primeira vez sentiu em si o sopro da inocência em si. Deu um novo passo e continuou. Descobrira, não teria o destino da mulher de Lot.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma nova palavra


Emile Chambon - L'Eveil (1975)

A ideia de despertar tornou-se, na vida do espírito, um lugar comum. O século XX e mesmo o XXI tornaram-se o lugar da mais feroz banalização de tudo, e a ideia de despertar, de abrir-se para uma outra realidade que não a do senso comum e da vida quotidiana, não deixou de ser arrastada pela onda de banalização que a tudo submerge. O viandante precisa não só de descobrir a realidade a que esse termo outrora designou como de encontrar uma outra palavra não contaminada pela rasura do tempo, palavra que retire o despertar da morte a que o abuso o parece ter condenado.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Amanhecer e anoitecer

Albert Dubois-Pillet - O Marne ao amanhecer (1888)

O estranho encontro entre a aurora e o fluxo das águas de um rio constitui-se num símbolo do próprio devir espiritual. Olhamos e pressentimos que a luz nascente vem arrastada pelas águas, que a tornarão a levar para que a noite chegue. É assim também que o rio do tempo arrasta a luz do espírito: amanhecer e anoitecer são os trabalhos e os dias da vida espiritual.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Da melancolia

Eduardo Úrculo Fernández - Melancolia (1982)

A melancolia é o sentimento que parece fundar, no âmbito do poético, a elegia. Todos os sentimentos que se deixam trabalhar pela arte - nomeadamente, pela poesia - remetem para experiências que estão para além daquilo que é meramente subjectivo. São uma janela para uma experiência que transcende a mera individualidade e que a abre para o mistério da existência. Quando a melancolia toma uma forma elegíaca é o espírito cindido de si mesmo que fala do abandono em que se encontra e do desgosto que esse abandono provoca.