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quarta-feira, 6 de março de 2024

Arqueologias do espírito 29

Ferdinand Olivier, Procession of Pilgrims in the Forest, 1814 

Talvez o espírito tenha descido sobre os homens na sombra da floresta. Ali, aquele animal desprotegido encontrava abrigo e, por instantes, podia esquecer o medo terrível que o envolvia. Sob os ramos do arvoredo, escutava a passagem do vento pelas folhas e descobria os raios luminosos que fendiam a copa das árvores para reverberarem na erva húmida. Por vezes, os homens encontravam-se na clareira e deixavam que a luz os banhasse, mas logo o perigo de estarem expostos os fazia voltar para a sombra, onde se sentavam e narravam longamente as aventuras que tinham vivido ou que inventavam naquela hora. Ao contar, ao inventar, uma propriedade nova nascia dentro de cada um e arrancava-o à pura animalidade de onde tinha vindo. Era o espírito que descia sobre ele e o tornava num outro ser.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Arqueologias do espírito 28

Benvenuto Benvenuti, Cipresse e colombe, 1914

Terá sido decisivo o encontro que colocou os seres humanos perante os ciprestes. Mais que outras árvores, em que a linha que une a terra ao céu se dispersa em ramagens perdidas no caminho, nos ciprestes tudo se conjuga para que o olhar não se afaste do alvo que deve desejar. Não admira que, em certos lugares, o cipreste se tenha tornado árvore de cemitério. Não porque haja nela alguma coisa de fúnebre, mas porque simboliza esse velho desejo humano de elevação muito para lá do território que o corpo, por lhe pertencer, não poderá deixar. Ciprestes são símbolos que indicam o caminho. 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Arqueologias do espírito 27

Caspar David Friedrich, Puerto de Noche, 1818
Mais que o dia, a noite terá descido até ao fundo insondável do inconsciente humano. O terror do que se tornou desconhecido, a presença da morte mesmo ao lado, a noite não era o lugar do sossego onde o corpo se desligava da vigília para se entregar ao prazer do sonho. Quando a luz acabava, vinha a angústia trazida pela incerteza que invadira o mundo, substituindo a exaltação derramada pelo Sol. Foi assim que a pura noite se tornou em trevas e, no fundo de cada um, continua a projectar o terrível com que durante milénios se revestiu, lembrando-nos que a claridade é sempre efémera. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Arqueologias do espírito 26

Émile-René Ménard, La Nube, 1896

Pelas nuvens chega-se a uma das mais arcaicas experiências de ocultação e de desocultação. Escondem o Sol e roubam aos homens a luz que os ilumina e permite a prevenção dos perigos. Ao serem levadas pelo vento, o retorno da luz torna-se uma epifania. Se escurecem e se combatem, os olhos ficam presos ao grande espectáculo, mas os corações temem a tempestade, a transformação em caos de uma ordem construída com dor e esforço. Se delas cai uma chuva plácida, a esperança desenha-se nos rostos, e das bocas solta-se uma acção de graças, como se ainda houvesse lugar para um amanhã.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arqueologias do espírito 24

Francisco Metrass, Pastores Guardando o Rebanho, Sec. XIX

Não será das mais arcaicas imagens, aquela que junta numa unidade o pastor e o seu rebanho. A pastorícia, na economia do desenvolvimento da espécie humana, é um acontecimento recente, demasiado recente. No entanto, a sua força é de tal ordem que se tornou metáfora e símbolo com que os homens pensam a relação de uma comunidade com os que têm a função de a dirigir e conduzir salva ao aprisco. No rebanho, simboliza-se a unidade do conjunto dos homens e também a sua necessidade de possuir um condutor. O pastor cedo emergiu como o símbolo daquele que tem por dever conduzir os homens. O bom pastor.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Arqueologias do espírito 23

Yasuo Kuniyoshi, Refugees, 1939

Uma das experiências espirituais mais arcaicas será a do refúgio. Como muitas outras, também esta começou na concretude do corpo. O perigo que sobre ele descia fez com que a humanidade aprendesse a refugiar-se, a circunscrever-se num espaço de tranquilidade. A repetição da experiência levou-a não apenas a procurar o lar num locus amoenus, onde o espírito se poderia desenvolver, mas ainda a fazer da vida espiritual o autêntico refúgio. Todo aquele que a ela se entrega é um refugiado. Foge de um locus horrendus e procura a vida autêntica nessa abertura do espírito para além do mundo. 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arqueologias do espírito 22

Kerekes Gábor, Apple, 1991
Dádiva espontânea da natureza, os frutos ter-se-ão inscrito tão fundo no espírito dos homens, que estes não hesitaram em fazer de um deles o símbolo da sua expulsão do paraíso e da queda na vida mundana. De certa maneira, a maçã arrastou os homens na sua viagem para terra. Retirou-os dessa existência fora do espaço e do tempo e fê-los aterrar num corpo sujeito à duração. Da contemplação da viagem da maçã desde os ramos incessíveis até à terra dura, o espírito descobriu um modo para explicar porque se encontro presa na cela do corpo e na caverna do mundo.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Arqueologias do espírito 21

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

Nunca saberemos o estremecimento que percorreu o corpo do primeiro homem que viu as montanhas nascidas da terra elevarem-se e fundirem-se nos céus. Essa ignorância, porém, é compensada pelas reverberações sem fim desse acontecimento. Como uma pedra que cai nas águas imóveis de um lago e provoca uma ondulação que parece não acabar, também esse primeiro avistamento não deixou de criar ondas que se vão alargando, envolvendo cada novo tempo e fazendo com que os homens continuem a estremecer ao verem as mais sagradas núpcias, as que unem Céu e Terra.

terça-feira, 2 de março de 2021

Arqueologias do espírito 20

Lee Miller, The veiled Eiffel Tower, Winter 1944-45
Neblina, névoa, nevoeiro, nebuloso, nuvem. A sequência de aliterações permite descer ao fundo da gruta. Ali a consciência guarda os arquétipos com que abre o espaço para que o significado assombroso das coisas se manifeste. Muito mais funda do que a consciência clara está a zona da penumbra. Se visitada em sonhos ou numa vigília absorta, descobre-se o caminho para o mistério. Então, os passos afundam-se na neve fria e o viajante vai afastando as mil cortinas que estão no fundo de si. A neblina, a névoa, o nevoeiro, o nebuloso, a nuvem e descobre-se na clareira aberta do enigma.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 19

Eugène Atget, Eclipse, 1911

Antes de ser a ocultação de um astro, o eclipse foi sinal enviado pelos astros. Abriu no coração dos homens o caminho que leva das coisas manifestas às ocultas. Se algo que se conhece, ainda que seja por um conhecimento distante, embora tecido na convivência dos dias, pode esconder-se, então é provável que muitas sejam as coisas encobertas aos olhos humanos. Uma demanda sem fim começou então. Não em busca do que se vê, mas do invisível, daquilo que, continuamente, é objecto e sujeito de um eterno eclipse.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Arqueologias do espírito 18

Johann Anton Castell, Lago di Como, 1841
Foi fora de si que o homem descobriu a serenidade. Envolvido no turbilhão da natureza, temeroso dos perigos que o assaltavam, não havia no coração humano um lugar para a plácida tranquilidade. Tudo nele era fogo e inquietação. Encontrou a serenidade no dia em que, tomado pelo eterno desassossego, estancou o olhar nas águas paradas do grande lago. Nelas reflectia-se o céu, e ele abriu os olhos de espanto. Esqueceu o perigo e desejou que todo o seu ser fosse um enorme e sereno lago, onde nada encapelasse as águas.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 17

Gioacchino La Pira, Veduta di Capri al chiaro di luna

As águas retêm o murmúrio e deixam que o grande manto do silêncio cubra o mundo. Então, a Lua desce do seu pedestal etéreo e aproxima-se da Terra. A sua luz funde-se no silêncio. Quem, escondido e incógnito, observa o mistério não sabe se está perante um silêncio luminoso ou uma luz silenciosa, apenas abre o coração para que seja tocado pelo que acontece e os sinais desçam no seu ser, o revolvam e inscrevam nele o poder de caminhar sobre as águas e de discernir aquilo que é daquilo que não é e nunca será. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 16

Johann Anton Castell, Romantisches Lagerfeuer im Mondschein, 1850

Noite de lua cheia, fogo e mar. Três figuras de mistérios e uma de iluminação. Os grandes mistérios da noite, do oceano e da lua, com a sua luz tamisada, crescem dentro do coração de homens e mulheres. O temor da noite, o murmúrio das águas, a secreta vibração da lua, tudo isso se esconde no mais recôndito da alma, enquanto o fogo traz o calor e a luz que iluminando a tudo vela. E assim nasce o amor com os seus jogos nocturnos, preces lunares, rumores marítimos, como se fosse um fogo que arde sem se ver.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 15

Edwin Deakin, Campfire in the Redwoods, 1876
Na floresta, uma fogueira ilumina a noite. Os olhos perdem-se na dança das labaredas, o coração bate compassado e tranquilo, as vozes silenciam-se, enquanto o espírito desce pela corda da memória, de uma memória bem mais antiga e funda do que a de cada um, e mergulha num tempo em que o fogo era a imagem divina, protectora e irada. E nessa memória, cada um pressente, no silêncio da noite, a verdade que se abriga no crepitar da madeira e na inconstância do lume.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 14

George Inness, Evening Landscape, 1862

Esses momentos em que a luz é já um exercício de nostalgia e a noite a promessa pronta a cumprir-se, essa hora indecisa do crepúsculo inscreveu-se fundo no fundo do espírito dos homens. Entre a beleza do dia que acaba e o terror das trevas, o coração silencia-se por instantes e uma estação no calvário da existência ganha então, aí mesmo, um lugar, onde prepara a ressurreição da luz, no dia que se seguirá à noite.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 13

Stanisław Witkiewicz, Spring fog, 1893
A dissimulação da realidade sob um manto de nevoeiro, a suspeita de que alguma coisa reside naquilo a que os olhos, não sem pena, descortinam como esboços, o temor de um perigo velado pela cortina da névoa ou a expectativa de algum bem dissimulado entre a neblina, tudo isso abriu o espírito para a dimensão do mistério, o que existe fora do homem e o que reside em si, sempre oculto na penumbra do pensamento ou no crepúsculo da imaginação. Adentrar-se pelo manto húmido da névoa e assim se abrir ao segredo do mundo, ao enigma de si. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 12

Alexandre Calame, Waterval van de Handeck aan de Grimsel, between 1830 and 1848
Imerso em si, o homem olha o revoltear das águas e escuta a música que chega até ele vinda antes do tempo. No turbilhão, ressoa a operação gigantesca de trazer um universo à existência e o espírito, aquele que pairava sobre as águas, entrega-se à rememoração, pois uma linha sem espessura, mas indelével, o autêntico fio de Ariadne, liga-o ao ânimo daquele que observa em silêncio o fluir revoltoso das águas. E na contemplação do que é visível, encontra o contemplador um caminho para o invisível, instruindo-se nesse secreto exercício da memória. 

domingo, 22 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 11

Olga Wisinger-Florian, Prater Avenue in Autumn, ca. 1900
A queda, esse acontecimento que molda as existências e as tinge com o cobre da finitude e da falibilidade. Sentados por terra, nesses Outonos arcaicos, entre o medo do predador e o desejo da presa, os olhos humanos contemplavam o estranho espectáculo que se lhes abria. As folhas ainda há pouco verdejantes amareleciam, acobreavam e caíam baloiçando no ar, se uma brisa as tocava. O chão juncava-se de folhas caídas e os homens, ainda mal despertos para o sentido da vida, descobriam-se também eles folhas secas que o Outono haveria de fazer cair. 

domingo, 15 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 10

Ricardo Bensaúde, Crianças correndo atrás de um pássaro, 1958

É um longo fascínio aquele que prende o coração dos homens ao voo dos pássaros. Presos à terra, a imaginação trabalha para se elevar aos céus. Os olhos brilham perante dança volátil, as horas de observação sem fim, a esperança sempre renascida e sempre frustrada de um dia ganharem asas e voar. Essa observação arcaica daqueles que voam tornou-se uma duradoura tradição. Como aprendem a caminhar na terra e a usar a linguagem, todas as crianças aprendem a olhar os céus, pois no seu coração, ainda antes de nascerem, habita já o desejo de voar.