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sábado, 15 de fevereiro de 2014

O turista e o peregrino

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Há duas formas de fazer o caminho que se abre ao chegarmos à vida. Podemos ir de estação em estação, percorrendo múltiplos e diversos caminhos como se, apesar da diferença, fossem o mesmo. Podemos, todavia, fazer o caminho sem sequer sairmos do local que nos cabe, penetrando-o mais e mais, percebendo a sua espessura, compreendendo-o na diferenciação que constitui a sua identidade. No primeiro caso, escolhe-se a via do turista. No segundo, a do peregrino.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A música das esferas celestes

Francisco Iturrino - Romaria (1905-1909)

A tradição religiosa ocidental, cujo núcleo é o cristianismo, é atravessada por uma ambiguidade que nos pode deixar perplexos sobre o significado da vida neste mundo. Por um lado, ela é um vale de lágrimas onde os homens suspiram, gemem e choram. Por outro, é uma romaria, onde a peregrinação e a festividade se combinam num arraial em perpétua deslocação. Facilmente se percebe como estas duas concepções reflectem a visão do inferno e a do paraíso celeste. Mas isso é secundário. O essencial é compreender que as visões não devem ser opostas mas vistas como complementares. Sim, a vida pode ser um vale de lágrimas - para muitos, pelo sofrimento recebido, uma antevisão mesmo do inferno - mas aquele que peregrina, que vai na romaria, atravessa esse vale de lágrimas dançando e cantando, pois aquilo que chama por ele e o guia soa-lhe no coração como a mais pura e envolvente música. Provavelmente, a música que o velho Pitágoras dizia provir da revolução das esferas celestes e para a qual o hábito nos tornou surdos.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A via do viandante

Ernst Ludwig Kirchner - Il sentiero dell'alpe; Sentiero di montagna-paessagio montano con alpeggio (1921)

Muitas vezes pensa-se que, em oposição aos caminhos batidos, às sendas mil vezes palmilhadas, o viandante deve inventar novas rotas, caminhos que sejam singulares e só por ele transitáveis. Abrir um caminho não seria, nesse sentido, rasgar a terra por onde os outros passassem, mas dar o exemplo de encontrar o seu próprio caminho, de afirmar a sua singularidade, de se mostrar único. Tudo isto, por interessante que possa ser, ilude uma outra questão mais decisiva. O importante não é o caminho que se faz mas a forma como se caminha, como se viaja, como se peregrina. O inédito de cada viagem e a novidade de cada peregrinação não residem na estrada que se toma, mas na forma como o viandante a percorre. Não há via fora do viandante e aquele que ainda se preocupa com que estrada deve tomar, por muito que ande nunca sairá do lugar onde está.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Peregrinatio ad loca infecta

O ano vai acabar, mas a peregrinatio ad loca infecta parece não ter fim. É aquilo que compete a nós, seres mundanos. Por vezes, consolamo-nos com a ideia de estarmos no mundo mas não lhe pertencer. Mas isso é ainda uma idealização, uma fuga mundi, no sentido pleno da expressão. É nesse mundo que nos compete peregrinar, visitar os locais de perdição, os tomados pelos miasmas da doença, aqueles onde nos esquecemos de quem somos. Se fomos enviados a esta terra e a este mundo, não será uma blasfémia dizer que não lhe pertencemos? Um novo ano vai entrar, segundo o calendário que tomámos por nosso. Se for essa a vontade do Altíssimo, e enquanto essa vontade permanecer, continuará a pregrinatio ad loca infecta. A que outros lugares poderíamos nós, pobres mortais, peregrinar, presos à nossa finitude? Uma boa viagem.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A peregrinação errante

Interrogo-me muitas vezes sobre o modo como a Igreja Católica deverá falar aos homens de hoje. Refiro-me aqueles que consumaram em si o processo de modernização iniciado pela Reforma protestante e o Iluminismo. Por exemplo, o esforço de Bento XVI, uma das poucas vozes europeias que tem alguma coisa a dizer, tem sido notável, nomeadamente no campo da cultura, da arte, da filosofia, da dimensão social e política da acção dos homens. Por vezes, porém, sinto que há algo de verdadeiramente essencial que nós homens modernos aspiramos e que não encontramos na Igreja. Para além da questão da cultura e da arte, para além das questões sociais e políticas, para além mesmo das questões do rito e da teologia, é provável que a deriva em que vive o homem moderno esteja a criar um espaço para uma experiência espiritual profunda e radical.

Mais do que em outros momentos da História do Ocidente, a grande experiência do desvario, da alienação, da negação do Espírito, da dissipação da vida, tudo isso que constitui a humanidade ocidental separada já da Igreja (essa humanidade que, com Nietzsche ou na sequência deste, proclamou a morte de Deus), tudo isso, dizia, significa uma experiência desmedida de errância. Esta é o lado oculto da maioridade que os homens atingiram na sequência do Iluminismo. A errância, todavia, significa ainda peregrinação, mesmo que este peregrinar não tenha, ou ainda não tenha, um santuário onde se acolher.

Ora estes peregrinos, que não sabem que o são, são uma cada vez maior fatia das nossas sociedades, e talvez precisem de um outro tipo de linguagem, e de uma nova forma de diálogo. Talvez estejam já suficientemente maduros, embora não o pressintam nem a Igreja o compreenda, para o chamamento do Espírito. Para estes espíritos, aparentemente tão orgulhosos da sua errância, talvez o essencial não seja a questão da dogmática teológica, nem da renovação da perspectiva estética (bem necessária na Igreja, por sinal), nem do diálogo entre a Igreja e a cultura pós-moderna onde nos movemos, nem a problemática social e política (um ponto importante, na verdade). Tudo isso lhes parecerá ocioso. Melhor, tudo isso será sentido como cansativo e destituído de interesse.

Mas não estarão sequiosos que o Espírito fale para lá da Razão? Seja a razão teológica, ou estética, ou ética, ou política. Não estarão sequiosos da intranquilidade da aventura que será o encontro com aquilo que os constitui e os institui? A errância em que vivem não será já uma preparação para a intranquilidade da Via? Não precisará, por isso, a Igreja de encontrar dentro de si gente com profunda experiência e maturidade espiritual e que, a partir dessa experiência madura, possa falar com os homens de hoje, não como um pastor fala ao rebanho nem como um adulto fala a menores de idade, mas como peregrinos experientes na Via falam a outros que a procuram, mesmo que o não saibam? Não precisa a Igreja desses homens e de encontrar com eles outra linguagem?

Maturidade espiritual significará, pelo menos, duas coisas. Por um lado experiência efectiva na Via para a Verdade e para a Vida. Por outro, abandono da segurança da linguagem cristalizada e já morta que perpassa no ritual e na liturgia. Essa linguagem é, muitas vezes, pueril e contraproducente, já incapaz e impotente para conter o mistério e falar dele aos homens de hoje. Certamente que a Igreja Católica atravessa muitos e graves problemas. Mas talvez o mais grave seja o de não conseguir encontrar em si forças espirituais suficientemente maduras, criadoras e seguras para acolher os errantes e sequiosos peregrinos do mundo moderno. Peregrinos esses que muito provavelmente estarão pouco abertos para questões de dogmática e muito para experimentarem o Caminho.

domingo, 29 de novembro de 2009

Caos

O caos é o símbolo do mundo. Mas não foi ao mundo que Ele enviou o Filho? Não foi nele, mundo, que o Filho peregrinou, mesmo que a sua peregrinação também tenha sido uma peregrinatio ad loca infecta? Não foi ao mundo que fomos enviados para que, em nosso peregrinar, exaltemos Aquele que não é deste mundo? O caos é apenas a matéria que espera o nosso operar ordenador, que nunca será apenas nosso. Nele, caos, também estão os deuses.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Via Crucis

De onde vem e para onde vai o homo viator, o viandante que percorre os caminhos do mundo? Se escutarmos a voz do cristianismo, o viandante vai de Adão para Adão. O mundo surge assim como uma longa peregrinatio de si para si mesmo. Como Ulisses, o viandante sai da aprazível Ítaca para a guerra de Tróia. De certa maneira, Ulisses é o homem caído, um Adão helénico, sendo a queda simbolizada pela saída da pátria para a multiplicidade do mundo, da qual a guerra é a metáfora mais acabada. Mas, como o filho pródigo, também Ulisses tem necessidade de retornar ao seu estado adâmico original e empreende a viagem de retorno, uma viagem cheia de armadilhas e perigos. Ulisses é então o peregrino que se perde na terra estrangeira até encontrar, com o beneplácito dos deuses, a graça, dir-se-á em linguagem cristã, o paraíso perdido. O viandante é ao mesmo tempo Adão e Ulisses, mas o Adão que é expulso do paraíso só retorna a ele como Cristo, o crucificado. A peregrinatio do viandante é a via crucis que o leva do primeiro ao segundo Adão. Os caminhos que percorre só podem então ter dois sentidos: ou conduzem ao engano, à ilusão e à delapidação de si, ou apontam para o paraíso de onde Adão e Ulisses foram, por uma necessidade imperiosa, postos fora. Mas saberá o viandante destrinçar um e outro? Quantas vezes não é o caminho do engano, da ilusão e da delapidação de si uma autêntica via crucis? Mas sabê-lo-á aquele que a está a trilhar?