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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Micronarrativa (64) Viagem

Ernst Haas, Utah, 1952

A imagem extática de uma natureza que espera, uma paisagem delicada onde os mais terríveis segredos se escondem, para que o silêncio os guarde e não os deixe cair, como um trovão retumbante, sobre quem passa. Esse fundo sem fundo aguarda-te e tu, perdido na névoa da ignorância, precipitas-te para ele, arrastando tudo atrás de ti, como se esse mundo silvestre fosse o lar onde a esperança te aguarda.

domingo, 25 de setembro de 2022

Micronarrativa (63) Jogadores

Otto Scharf, Kartenspieler, 1905

Apesar das moedas na mesa, os jogadores de cartas não jogam para obter ganhos. Seria, pensam, ignóbil fazer do lucro uma motivação para passar aquelas horas. Um duplo objectivo os move. Esconder o seu pensamento e desocultar o dos parceiros. Quando a sessão acaba, sentem-se felizes. São como as crianças que acabam de jogar às escondidas. Quando se vão embora, sabem que retornarão no próximo dia.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Micronarrativa (62) Gigantes

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958

Ainda hoje se acredita, explicam-me, que havia, naqueles tempos, gigantes, cujo prazer maior era destroçar seres humanos. Acontecimentos tão antigos nunca são registados com o rigor a que estamos habituados, pensei. Talvez não houvesse qualquer gigante, contrapus em voz alta. Uma conjectura, uma mera conjectura, mas será sensata ou verosímil? A verdade, oiço, é que não faltam provas de seres humanos destroçados. Algum gigante há-de ter feito esses trabalhos. Encolhi os ombros e sorri.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Micronarrativa (61) Subir e descer

JCM, Black & White Dreams. Lugo, 2007
Subia lentamente os poucos degraus que levam ao primeiro patamar. Depois, parava e olhava para o segundo lance de escadas, mas rapidamente descia o que tinha subido. Chegado ao ponto de partida, olhava para cima. Tornava a subir, sem pressa, como se estivesse exausto, até ao primeiro patamar. Chegado aí, tornava a parar e a contemplar o segundo lance de escadas. O que via impelia-o mais uma vez para uma rápida descida. Quando lhe perguntaram por que razão gastava a vida nesse subir e descer, respondeu: porque sou homem e a vida de um homem não é mais do que uma série de pequenas ascensões e pequenas descidas.

sábado, 14 de maio de 2022

Micronarrativa (60) Iluminação

David Hamilton, Cabourg beach, France, 1970s

Mãe e filho caminham em direcção ao mar. Persegue-os o sonho dos dias de Verão, o ir e vir das águas sobre a areia, a esperança de encontrar alguém conhecido de há muito para que aquela hora ganhe um sentido descoberto na troca de palavras e na cumplicidade dos anos. Quando se sentarem a perscrutar o enigma do oceano, o sol tocar-lhes-á os corpos e em cada um deles haverá um sentimento de felicidade, como se uma iluminação lhes rasgasse o coração.
 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Micronarrativa (59) Dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye performing a “pas de bourree”, 1947

Sempre sentira dificuldade em estar de acordo consigo. Sobre qualquer assunto, enquanto os outros tenham uma opinião firme, ela tinha muitas e nenhuma delas era marcada pela força da convicção. Essa contínua e inexplicável guerra que a atravessa poderia tê-la exaurido e conduzido a uma morte prematura. Salvou-a a dança. Enquanto girava sobre si, os seus múltiplos corpos desligavam-se e reconciliavam-se com as suas próprias almas. Quando parava, todos se uniam num único corpo e numa única alma. Então, ela sabia quem era.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Micronarrativa (58) Do exílio

Autor desconhecido, Women carrying water, Volendam Holland, 1920s 

Mais tarde, ao ver a fotografia, a criança, então já mulher madura, terá pensado como eram seguros os tempos em que nada parecia mudar. Aquelas mulheres, todas da sua família, faziam o que muitas outras antes delas também o fizeram, com os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas dores. Ela, porém, exilara-se desse mundo. Na sua nova pátria, nada é como outrora, nem aquilo que é se mantém por muito tempo. Depois, olhou longamente para a figura da mulher da frente e chorou.

domingo, 14 de novembro de 2021

Micronarrativa (57) A mulher dupla

Ilse Bing, Self reflection, 1947
Solteira, cansou-se da solidão. Arquitectou diversas soluções. Das menos ousadas, às mais radicais. Achou as primeiras frouxas, as segundas hiperbólicas. Foi então que lhe ocorreu a solução. Saiu de casa, ganhou distância suficiente, apontou a máquina à janela do quarto. Disparou. Captou si uma dupla imagem, uma em cada vidro. A partir daquele momento, nunca mais estaria só. Se ficasse solteira, seriam duas. Se casasse, o marido seria bígamo, mas isso já não lhe importava.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Micronarrativa (56) O homem do progresso

Elliott Erwitt, Paris, 1989
Certas pessoas são, para a humanidade, autênticos benfeitores e verdadeiros faróis que lhe iluminam o caminho. Ele era um homem voltado para futuro, mesmo quando vestia como se estivesse no passado. Ocupava-o o progresso. Como dizia sempre, há levar as coisas em frente. Ao andar pelas ruas só conhecia um passo, o passo de gigante.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Micronarrativa (55) O simulacro

Eugene Robert Richee, Carole Lombard, ca. 1937
A voz veio de dentro do espelho. Nunca me habituo ao simulacro da minha imagem. Como é possível que eu, tão cristalina e imortal, possa emanar um ser de carne que pretende emular-me a glória, mas que nunca terá a minha eternidade?

sábado, 21 de agosto de 2021

Micronarrativa (54) A espera

Júlio Pomar, Mulheres na Praia, 1950

Sentaram-se as três na areia da praia. Quem as visse pensaria que eram mulheres à espera dos maridos ocupados na faina do mar. Os traços rudes das faces, as roupas vindas de uma vida escassa, as costas viradas para o mar, como se dali pudesse vir não o bem, mas o pior dos males, tudo isso confirmaria a impressão do espectador. Como poderia qualquer mortal, sempre preso às aparências, descobrir a verdade? Quem as viu ao crepúsculo entrar nas águas não tem dúvidas. Eram sereias que esperavam a hora de regressar ao lar. Nunca mais foram vistas.

domingo, 6 de junho de 2021

Micronarrativa (53) Encostado à parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Exausto, virou o carro-de-mão e encostou-se à parede. Estou derrotado, disse. Também eu luto diariamente com o anjo. Também me deram o nome de Jacob, mas não foi a minha coxa tocada pelo adversário, foi todo o corpo. Por isso, não recebo a bênção, nem tomarei o nome de Israel, nem de mim sairá uma nação. Serei um grão de areia no deserto. O anjo que me calhou não era o anjo de Deus, mas aquele que se apodera dos homens para os encostar à parede e perdê-los.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Micronarrativa (52) Pátria do silêncio

Rui Filipe, Fuencarral , 1953

Há lugares onde acontecem as coisas mais estranhas. Lentamente, quem neles vive vai moderando a vontade de falar, a voz perde o timbre e o ritmo e, por fim, emudece. Então, os contornos do corpo começam a dissolver-se, a figura dilui-se e a pessoa torna-se invisível. Na pátria do silêncio, todos os que a habitam são invisíveis.

terça-feira, 9 de março de 2021

Micronarrativa (51) A mulher bifronte

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Como Janus, o deus bifronte, também ela tem dupla face. Uma virada para trás e outra para a frente. Olha compungida para o passado, mas não se atreve a descerrar os olhos que lhe diriam o futuro. A vergonha do que foi é menor do que o terror de chegar ao que será sem a inocência da novidade.
 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Micronarrativa (50) Uma história amarela

Francis Picabia, L'arbre jaune, 1909

Uma árvore amarela cresce de um chão amarelo para um céu a amarelecer. Por ela passam viajantes perdidos na cor da sua viagem. Sentam-se sob a copa da árvore e meditam longamente sobre as cores deste mundo. Enquanto se concentram no objecto da sua meditação, o amarelo vai-se definindo como a cor com que hão-de viajar. Chamam um táxi. Ele chega preso à cor amarela. Para a grande cidade amarela, dizem, se o taxista lhes pergunta pelo destino.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (49) A mulher que dança

Arnold Genthe, Margaret Severn dancing at the water’s edge, 1923
Presa ao feitiço da névoa, ela dança sobre a areia húmida. A água vai e vem e a mulher baloiça ao ritmo do murmurar do oceano. Por vezes, é um pássaro. Outras, uma sereia. Por momentos, lembra um anjo preparando-se para se elevar aos céus. Por fim, enquanto o corpo se desdobra em cada passo, a mulher que dança descobre o seu ser no pálido esboço da sombra que sob os seus pés dança a dança que ela inventa.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (48) A rapariga do arco

Frantisek Dtrikol, Broken Arc, 1927

Ela segura o arco como se este a pudesse libertar do desamparo em que se deixou cair. De joelhos, ergue o rosto para semear a dúvida em quem a observa. O corpo, nu e preso à roda frágil da vida, disfarça-se surpreso na sombra que projecta, como um fantasma ancestral, na planície da parede.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (47) Descoberta

Richard Avedon, Carmen, Coat by Cardin, 1957
Ela caminhava despreocupada. De súbito, o passeio, que lhe parecera infinito, terminava e teria de caminhar pela estrada. Foi então que, levada por um súbito impulso, deu um salto. Espantou-se por não cair. O corpo desligou-se da submissão à gravidade e ela ascendeu lentamente e compreendeu que, como uma ave, pairava sobre a cidade. Sabia, agora, quem era.
 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Micronarrativa (46) Meditação

Micha Bar Am, Father Neophitus, St. Katharina Monastery, Sinai, 1967

Talvez o cigarro seja um símbolo da condição humana, pensou o velho monge exausto. Enquanto arde sob o império do desejo, continuou, o fumo, como o espírito, eleva-se aos céus e deambula errante pelas alturas. Acabado o cigarro, é deixado no sarcófago do cinzeiro, sem que o espírito se recorde do lugar de onde partiu.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Micronarrativa (45) O beijo

Robert Doisneau, Le Baiser de l'Opera, 1950
Ainda não o sabiam, pois muitas são as coisas que se escondem aos olhos dos homens e mais ainda as que o coração não consegue desvendar. Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, ela ofereceu-lhe a boca, os corpos vibraram e a vida oscilou. A emoção do primeiro beijo era tão forte que não lhes permitia compreender que era o último.