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quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cegueira de Édipo

André Masson - Édipo (1939)

Das múltiplas peripécias da vida de Édipo, a mais decisiva de todas é a que ocorre quando ele se cega. Nem o abandono à morte pelos pais, nem o salvamento miraculoso e a subsequente adopção por Pólibo, rei de Corinto, nem o assassinato do verdadeiro pai, tão pouco a derrota da esfinge e o casamento com a sua mãe e a coroação como rei de Tebas possuem o significado espiritual da cegueira auto-infligida. Em todos os momentos anteriores, Édipo move-se segundo o senso comum que pertencia à sua casta. E esse mover-se no que é comum está intimamente ligado ao seu desconhecimento de si mesmo. A revelação da identidade tonou-o cego para o que é o comum, tornou-o indivíduo e abriu os seus olhos para uma luz que não é visível. Édipo, ao cegar-se, tornou-se indivíduo e sábio. Abandonou o caminho do herói, a procura da glória, e a vida do espírito, como um caminho apenas seu, abriu-se diante dele.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cegos e guias de cegos

JCM - Distopia (o olho do panóptico) (2014)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mateus 15:14)

É no contexto de uma discussão sobre o que é a tradição que surge esta resposta. Por que razão se diz que se está perante cegos e guias de cegos? Porque a tradição espiritual é reduzida à observância ritualista sem relação com a vida verdadeira. É a ausência de contacto com a vida do espírito que torna os homens cegos. E aqueles que os guiam são ainda cegos, talvez mais cegos, pois vendo não vêem a vida. Cuidam apenas de um sistema de observação - que hoje diríamos distópico - que permite controlar a observação exterior das regras rituais sem tocar naquilo que vivifica o homem, e lhe dá a possibilidade de passar da cegueira à visão.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Dispositivos de cegueira

Loomis Dean - Las Vegas (1955)

Há uma luz que, por natureza, nos cega. Há outra que é pensada e produzida para nos cegar, um dispositivo de cegueira. A luz do espírito - à imagem da luz solar - sempre foi vista como excessiva para o homem, necessitando este de uma intermediação para lidar com ela. Os dispositivos de cegueira, porém, são de outra ordem. Apresentam uma natureza feérica e são suportáveis pelos seres humanos. Por trás deles esconde-se, todavia, um mandamento que nos ordena, sem remissão, que fechemos os olhos e nos entreguemos às trevas exteriores, onde, errantes, nos esquecemos de nós mesmos.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tornar-se cego

Júlio Pomar - Cegos de Madrid (1957)

Não se trata de ser cego, mas de tornar-se cego para ver. Pelos olhos entra o que nos deslumbra, e, deslumbrados, apenas temos olhos para o objecto do deslumbramento. Se nos tornarmos cegos, porém, o campo do visível deixa de ocultar o do invisível, daquilo que se esconde por detrás das coisas que prendem o olhar. Ao tornarmo-nos cegos abre-se a remota possibilidade de aprendermos a olhar.

domingo, 6 de abril de 2014

Entre duas cegueiras

Alfred Eisenstaedt - Woman under streetlight in Montmartre at night. Paris, France (1963)

A luz, por rigorosas e claras que sejam as explicações científicas, nunca deixará, para os homens, de ser um mistério. Não podemos olhá-la fixamente, pois cega-nos, mas sem ela seremos também cegos. Esta ambivalência da luz traz uma certa ordem, a ordem que diz respeito aos homens na terra. Devemo-nos deixar  envolver por ela, devemos olhar o seu efeito sobre o mundo e os seus objectos. Devemo-nos deixar guiar pelo seu resplendor, mas mais do que isso não nos cabe a nós, pobres mortais perdidos entre duas cegueiras.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre a cegueira

Karl Weschke - Blind man (1948)

Mais que patologia, a cegueira é condição humana. Por muita acuidade que possuam os olhos de um homem, é sempre muito maior o campo que se subtrai à sua visão do que aquele que, com olhar agudo e espírito penetrante, consegue abarcar. E isto torna risível quem se louva na sua inteligência ou na sabedoria que acumulou. Seríamos todos mais sábios se andássemos de bengala e tivéssemos, como guia, um cão.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Cegueira e sabedoria

Manuel Vega - Caravana de ciegos (1919)

Édipo não é sábio quando responde ao enigma da esfinge nem quando se torna rei de Tebas. A verdadeira sageza chega quando, perante a verdade do seu casamento com Jocasta, ele se cega. Também é no estado de cegueira que Paulo de Tarso acede à suprema sabedoria. Há toda uma tradição que assenta no paradoxo da necessidade de ser cego para poder ver. Como compreender isto? Vale a pena voltar ao livro A da Metafísica de Aristóteles, ao seu início: "Por natureza, todos os homens desejam saber. Um sinal disto está no prazer que têm nos seus sentidos; para além da sua utilidade, eles são amados por eles mesmos; e acima de qualquer outro o sentido da visão. Não apenas quando se visa a acção, mas mesmo quando não se está a fazer nada, preferimos a visão a todos os outros sentidos. A razão é porque a visão, mais que os outros, faz-nos saber e traz à luz muitas diferenças entre as coisas".

O prazer de ver, esse prazer enraizado na nossa natureza, vai muito para além da sua utilidade, permitindo ao homem uma determinada forma de saber. Ora o que o texto de Aristóteles nos diz é que esse saber tem uma natureza analítica, ele faz-nos ver as diferenças, permite introduzir cortes na realidade global. A particularização e especialização que o sentido da vista permite e fomenta acabam por tornar-se numa espécie de alienação e de enviesamento. Preso no prazer de ver, o homem entrega-se  ao divertimento da diferenciação, ao prazer da multiplicação de aspectos da realidade que, desse modo, são cindidos e tornados independentes.

Este saber visual torna-nos cego para a unidade da realidade, prende-nos na multiplicidade e nos jogos que essa multiplicidade permite. O saber natural, por prazer que vê, apenas permite um saber que não é sábio e não o é porque, seduzido que está pela capacidade de diferenciar, é incapaz de perceber a unidade de tudo, o sentido dessa unidade. Por isso, várias tradições sublinham a necessidade da cegueira para ver. Ver não o particular, mas o universal, o todo, aquilo que as diferenças escondem. O mundo é uma caravana de cegos, de cegos que o são porque dependem da visão e do prazer que ela permite. Tornar-se cego para ver é o caminho da sabedoria.