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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Ex nihilo

Kenneth Noland - Ex-Nihilio, 1958

Ex nihilo não se refere a esse nada de onde o mundo, através da criação divina, teria sido tirado, mas ao nada que a cada momento nos permeia e ao qual nos subtraímos por um esforço contínuo. Somos nós, que em temor e tremor, nos arrancamos ex nihilo até que esse nada nos vença ou, raras vezes, descubramos que esse nada somos nós.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O desejo e o nada

Remedios Varo - O desejo (1935)

Associamos rapidamente o desejo ao fogo e dizemos coisas como o fogo do desejo ou o desejo ardente. O que muitas vezes desencadeia o desejo é uma carência, a ausência de qualquer coisa. Pensa-se então que a energia que se manifesta no desejo vem do objecto desejado e não do nada que se revela na carência ou na falta. Isso será, todavia, um equívoco. A energia que alimenta o desejo não é o objecto que o há-de satisfazer, e assim matar, mas a própria carência, o próprio o nada que se manifesta no desejar. O desejo alimenta-se de si e é a si que vai buscar a energia com que fulge na noite e arde no dia. O desejo deseja-se a si.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O olhar da noite

Cruzeiro Seixas - Quando a noite nos olha (1989)

Não se trata de estarmos na noite, de caminhar nela, mas de sustentar o seu olhar. O que significará olhar a noite nos olhos? A noite como metáfora da ausência de luz é ainda um placebo tranquilizador. É preciso ir mais longe, é preciso descer. Não é apenas a ausência de luz que se esconde na metáfora da noite, é a própria ausência de ser, é o nada. No olhar da noite é o nada que nos olha, é a dissolução do mundo, é o rasgão do tecido com que construímos as nossas imagens, as nossas crenças e as nossas esperanças. No olhar da noite, tudo isso se dissolve e o viandante, sem norte, abre mão de si e espera que a noite o recolha.

sábado, 27 de abril de 2013

O silêncio e o nada

Odilon Redon - O silêncio

O silêncio não diz nada (rien), talvez porque é o nada (néant) que «diz» o silêncio. Compreendo que o nada (néant) é silencioso e que apenas podemos perceber o nada (néant) no silêncio. (Raimon Panikar, Mystique plénitude de Vie, p. 162

Há no mundo de hoje uma enorme poluição sonora. Não há lugar algum para onde possamos ir sem que o ruído nos invade. O pior, porém, são as palavras que nunca se calam dentro de nós. Esta poluição é o sintoma de um medo profundamente enraizado. Medo de quê? Medo de enfrentar esse nada que fala no silêncio, medo de se abrir para ele, medo de nos esvaziarmos para que ele seja nada em nós. O silêncio é a abertura para além do domínio das imagens sonoras, para além da multiplicidade das línguas e da pluralidade das palavras. No silêncio, escutamos, vazios, o Logos, esse nada anterior a todos os seres, esse verbo anterior a todos os sons. E isso aterroriza-nos, como o silêncio dos espaços infinitos já aterrorizava Pascal.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Da adoração dos ídolos

Umberto Boccioni - Idolo Moderno (1911)

Se há característica específica do tempos modernos, essa é a da idolatria. Perante o desafio da vida e as exigências da viagem em direcção a si mesmo, o homem moderno de tudo faz um ídolo onde se aliena e se perde. A idolatria é a fuga perante o espírito, a deificação da materialidade evanescente, das pequenas coisas que a nossa faculdade de desejar toma como objecto momentâneo de prazer. No exercício idolátrico, contudo, cada ídolo arvorado pelo homem sofre, apesar do culto prestado, uma diminuição no seu verdadeiro ser. Um ídolo nasce da separação da realidade a que pertence.  É esse corte que permite a aparente absolutização que está presente na adoração. Mas essa separação destrói as ligações que mantêm na realidade o ente idolatrado, o tornam em nada, o despem de todo o conteúdo ontológico. É este nada, e não mais do que ele, aquilo que a coisa adorada tem para oferecer ao adorador. O niilismo não é outra coisa que o processo de idolatria em curso há séculos. Sob o efeito do ídolo arquetípico, o homem transforma-se à sua imagem e semelhança, isto é, toma o nada como a sua efectiva natureza.

domingo, 22 de maio de 2011

Esperar

Por vezes, sem algo que o anuncie, tudo se torna sem sentido, como se de dentro de vísceras invisíveis viesse sobre a vida um cheiro putrefacto a nada. Não a um nada que indique a plenitude da ausência de odor ou gosto, mas de um nada que toma as células por dentro e as dissolve, corrompendo a vontade, liquefazendo os neurónios, tomados agora por uma sonolência sem fim. Como se abre o ser para que isto entre em nós? O ridículo. Tudo se torna risível e qualquer pretensão, gesto, desejo, mostra de nós o burlesco. Esperar a graça, desesperar por ela, ser incapaz de levantar a voz ao Alto. Dormir dias sem fim, deseja o corpo, reivindica, absurdo e ousado, o cérebro, condescende um coração mole. Dormir como se nada importasse. No silêncio da noite, erguer os olhos ao céu estrelado e esperar que a ferida se feche e uma voz ressoe no fundo do ser.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A fonte que mata a sede

Se pretender encontrar-me a mim mesmo, onde poderei descobrir esse fundo que me permite reconhecer uma identidade? Cada um dos meus traços, físicos ou psicológicos, é evanescente, mutável, redutível a nada. Essa aniquilação parece, então, ser o centro da minha identidade e cada um dos traços com que me apresento a mim ou aos outros não passa de uma máscara que esconde a ausência substancial de uma realidade. É nesse nada que deverei mergulhar, pois esta imersão é a aceitação plena daquilo que sou: nada, ou para o dizer de um outro modo: sou pó e ao pó tornarei. O nada, porém, deixa-me livre e é nessa liberdade que posso abrir-me para aquilo que em mim é mais do que eu. Uma substância? Uma coisa? Um objecto? Não, é um nada de onde as substâncias, as coisas e os objectos tiram a sua substancialidade, a sua coisidade, a sua objectidade. Procurar esse nada é procurar a fonte que mata a sede.