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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma lúgubre realidade

Leon Frédéric - A era do trabalhador (1895-97)

Como será possível denominar o quadro com o estranho título de A era do trabalhador? O que vemos, em primeiro plano, são mulheres e crianças e não encontramos vestígio de trabalho nem figuras que possam preencher o conceito de trabalhador. O que nos diz então este quadro sobre a era do trabalhador? Diz-nos que a actividade do homem se reduziu à sua condição natural, à pura corporalidade, à mera estratégia da sobrevivência da espécie, à preocupação com a reprodução da vida. A era do trabalhador é o tempo histórico em que o homem, despido da espiritualidade, se entrega plenamente aos afazeres da reprodução e da sobrevivência. A era do trabalhador é a confissão de uma dificuldade pela qual a espécie passa. Todas as suas forças se concentram nas dinâmicas biológicas ligadas ao corpo. A era do trabalhador, contrariamente ao que se propaga nas diversas retóricas sociais, não é a do reconhecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, mas o tempo em que a actividade do homem perdeu o sentido espiritual que dava dignidade tanto ao trabalho como àquele que o executava. A luminosidade do quadro de Leon Frédéric oculta, na beleza dos corpos e na esperança trazidas por novas vidas, a lúgubre realidade do homem moderno, a sua oclusão na pura corporalidade, o esquecimento daquilo que faz dele mais do que um animal.

quarta-feira, 13 de março de 2013

A dinâmica do compromisso

Maria Helena Vieira Da Silva - Liberdade  (1973)

Naquela tempo, disse Jesus aos judeus: «Meu Pai trabalha intensamente, e Eu também trabalho em todo o tempo.» Perante isto, mais vontade tinham os judeus de o matar, pois não só anulava o Sábado, mas até chamava a Deus seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus. Jesus tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho. De facto, o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que Ele mesmo faz; e há-de mostrar-lhe obras maiores do que estas, de modo que ficareis assombrados. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que quer. O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento, para que todos honrem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo: chega a hora e é já em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão, pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho o poder de ter a vida em si mesmo; e deu-lhe o poder de fazer o julgamento, porque Ele é Filho do Homem. Não vos assombreis com isto: é chegada a hora em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz, e sairão: os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida; e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação. Por mim mesmo, Eu não posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade, mas a daquele que me enviou.» (João 5,17-30) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

Duas portas para entrar no texto de João, o trabalho e a palavra. O trabalho do Pai e do Filho remete para uma ideia de dinâmica e de produção de obras. Isto permite perceber uma concepção do divino muito diferente de outras tradições onde Deus é pensado como estando afastado dos homens. A ideia aristotélica de Deus como motor imóvel é aqui superada pela ideia de trabalho mas também de compromisso que se exprime no vocábulo grego εργάζεται (ver aqui). O Pai trabalha continuamente e compromete-se também continuamente. Há assim uma dinâmica do compromisso, a qual constitui o modelo para o próprio Filho.

Este operar contínuo e este compromisso manifestam-se na palavra. O apelo que é feito aos homens é que escutem a palavra que lhes fala da dinâmica do compromisso de Deus para com eles. Se esta dinâmica não tem sábado, a que lhe deveria responder, por parte dos homens, também não. A disciplina da escuta não distingue o dia santo dos outros dias, pois todos os dias são santos, já que em todos eles a dinâmica do compromisso se efectiva.

É esta efectiva operatividade, mediada pela palavra, que não só cura os paralíticos como ressuscita os mortos, aqueles que estão encerrados no túmulo. O morto é apenas uma intensificação do estado de alienação simbolizado pelo paralítico do texto de ontem. Se se considerar a tradição platónica, o corpo é visto como o túmulo onde está encerrada a alma, onde ela se encontra alienada. Mas esta tradição materializa demasiado essa ideia de alienação. Mais do que o corpo, o túmulo é as múltiplas formas como a alma se perde na errância, na distracção, naquilo que a prende ao que é transitório. O dinamismo operatório do Pai, imitado pela acção do Filho e anunciado pela Sua palavra, é o caminho de libertação e emancipação dessa escravatura imposto pelo prazer do efémero. O compromisso do Pai é o da libertação e emancipação dos filhos.