terça-feira, 31 de março de 2015

Sobre mandamentos e imperativos

MC Escher - Ascending and descending (1960)

Quando pensamos no conjunto de mandamentos e imperativos que através das religiões e da filosofia são impostos ao homem, compreendemos o desespero com que a humanidade enfrenta a realidade que é a sua. A vida dos homens parece um ciclo, eternamente repetido, de quedas e ascensões. Descer e subir. Subir e descer. O mandamento e o imperativo nascem então da impotência do homem em interromper o ciclo e evitar, depois de cada ascensão, a queda que se lhe segue. Mas quando a queda não for a continuação da ascensão, o homem já não será um homem e mandamentos e imperativos para nada lhe servirão.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Poemas do Viandante (502)

Jorge Apperley - Nu (1945)

502. e o tempo vinha vestido

e o tempo vinha vestido
de fogo e água

um movimento na tarde
a abrir o teu corpo

um corpo azul e secreto
frágil como um rio

cantante como o incêndio
que em mim te espera

domingo, 29 de março de 2015

Um jardim para Orfeu

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

Se ouvirmos a expressão um jardim para Orfeu, é provável que o espírito se interrogue sobre aquilo que será possível escutar em tal lugar. Será a música de Orfeu ou o seu lamento pela perda de Eurídice, pela perda do amor. Mas um jardim para Orfeu só pode ser compreendido se compreendermos o que representa a morte e perda de Eurídice. Esta não é diferente da queda de Adão e a consequente expulsão do Éden. O jardim para Orfeu não pode ser outro senão aquele de onde Adão foi expulso.

sábado, 28 de março de 2015

O destino de Ícaro

Henri Matisse - Ícaro (1943-44)

No destino de Ícaro simboliza-se a condição do homem. Nem demasiado perto das profundidades das águas nem excessivamente chegado à luz do sol. Atraído pela luz, as asas derreteram e a queda foi o destino de Ícaro. Esta queda não deixa de ter uma ambivalência estrutural. Significou a morte e, ao mesmo tempo, a entrada na vida. A morte da sua condição sobre-humana; a vida pela sua redução à mera humanidade. Com Ícaro aprende-se que não cabe ao homem submeter a luz ao seu desejo, mas é sua condição esperar que ela chegue e o ilumine.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Na praça pública

Pierre Bonnard - La place de Clichy (1912)

A praça pública é o lugar de todos os perigos. Não porque aí possam ocorrer coisas terríveis que ponham em causa a existência, mas porque é o lugar onde só subsistimos sob a protecção de uma máscara. A sua frequência torna a máscara num hábito, e este é uma segunda natureza. Uma natureza que esconde e faz esquecer uma outra mais original, uma natureza essencial, que pode ser insuportável aos que da vida só conhecem a praça pública.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Haikai do Viandante (227)

Carlo Carra - La foce del Cinquale (1928)

sedento e secreto
o rio atira-se ao mar
na luz encoberto

quarta-feira, 25 de março de 2015

A viagem como composição

Piet Mondrian - Composición VII (1913)

Tudo é composição, arranjo, entrelaçamento de fios, cruzamento de linhas e formas, conjugação de notas. Também a viagem - aquela que conduz o homem de si a si mesmo, aquela que, ao apelo da voz interior, o leva a responder eis-me aqui - é uma composição. A princípio, o viandante força os elementos a cruzarem-se e quer fazer a sua própria composição, quer ser o autor de si mesmo. O tempo, porém, precipita-o na errância. Perdido, abre mão da sua autoria, para que uma outra, mais decisiva, se manifeste e a composição se torne fluida, leve, como se fosse a expressão autêntica daquele que é.

terça-feira, 24 de março de 2015

A tua casa

Kazimir Malevich - Casa com cerca (1910-11)

Não adianta cercar a casa. Não adianta fechar as portas e cerrar as janelas. Não adianta esconderes-te do mundo na solidão campestre. Se trazes o mundo e os seus negócios dentro de ti, eles perseguir-te-ão até ao mais recôndito dos lugares. Se dentro de ti os abandonaste, então qualquer lugar é a tua casa, qualquer lugar te serve para o silêncio e a solidão que reclamas.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

domingo, 22 de março de 2015

Estar à janela

Frances Hodgkins - At the window (1912)

Estar à janela é a condição mais equívoca do homem. Naquele que se senta à janela, cruza-se a nostalgia de estar do lado de lá, jogado no desconforto da viagem e na rudeza do desconhecido, com o temor que o prende ao conforto do que é familiar. Estar à janela é estar na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Na verdade, estar à janela é não estar em lado nenhum.

sábado, 21 de março de 2015

Poemas do Viandante (501)

León Kossoff - Outside Kilburn Underground, Spring (1976)

501. as águas negras do inverno

as águas negras do inverno
partiram cansadas

deixaram sobre o céu
um rasto de nuvens

e um astro desbotado
sem névoa nem fogo

sem uma chama que ateie
luz na primavera

sexta-feira, 20 de março de 2015

A solidão que cura

José Iranzo Almonacid - Isolamento (1978)

O isolamento pode ser o resultado de uma vida mecânica que segrega, numa sociedade de massas, a solidão. Nessa mecanicidade, o solitário sente-se vazio e este vazio é preenchido pela depressão. A solidão é, então, uma patologia perigosa. Há contudo outra solidão, a daquele que se isola para que um vazio se abra em si e, assim, seja preenchido pela plenitude daquilo que é. Este é o isolamento que cura e dá vida. Na verdade, só a solidão cura a solidão.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Haikai do Viandante (226)

Elmer Bischoff - Dragon (1948)

um dragão dorme
à porta do paraíso
velho frio disforme

terça-feira, 17 de março de 2015

O caminho oblíquo

Albert Gleizes - O caminho, Meudon (1911)

Por mais que deseje um caminho claro e distinto, o viandante acabará por descobrir que o seu desejo será sempre frustrado. Não há caminho espiritual que seja a execução de um conjunto de imperativos racionais, que o farão viajar por um espaço geométrico determinado pela limpidez da razão. A cada momento, o caminho varia, apresenta obstáculos, impõe retornos, logo seguidos de avanços, perde a luz que o ilumina, para que o viandante logo a descubra quando as trevas se tornarem mais intensas. Será sempre oblíquo o caminho do homem em direcção à voz que o chama.

domingo, 15 de março de 2015

A agonia em Getsemani

Paul Gauguin - Agony in the Garden (1889)

Na simbólica do cristianismo, a agonia em Getsemani preludia o sofrimento de Cristo pela prisão e morte que se aproximam. Uma leitura superficial fará da agonia o sinal de um destino necessário, inevitável. O que o cristianismo traz de novo é a subversão desse destino pela introdução da ressurreição, pelo desligar dos laços da estrita necessidade natural e a afirmação de uma liberdade que supera o destino. A agonia em Getsemani é o sofrimento que engendra a liberdade e nos torna livres.

sábado, 14 de março de 2015

Poemas do Viandante (500)

Marc Chagall - The dream (1976)

500. esse sonho mineral

esse sonho mineral
sangra na noite

uma rosa de silêncio
ferida no peito

uma estrela cadente
de pedra e sal

sexta-feira, 13 de março de 2015

Da acrobacia espiritual

Marino Marini - Acrobats (1960)

Muitos deixam-se seduzir pelas acrobacias do espírito, seja pela capacidade de cálculo e de argumentação da razão, seja por hipotéticos poderes espirituais. A vida espiritual não é, todavia, uma exibição do esplendor circense do ego. A única acrobacia verdadeiramente difícil, e útil, é o ater-se à realidade tal como ela é. Melhor, tal como ela brota a cada instante.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Haikai do Viandante (225)

Karl Schmidt-Rottluff - Casa em ruínas (1930)


tempo de ruína
na velha casa caiu
pedra cinza frio

quarta-feira, 11 de março de 2015

Um perigo vital

Aurelie Nemours - L'innombrable (1977-98)

O incontável não o é porque a sua quantidade seja infinita, mas porque já não pertence à dimensão do número e do cálculo. Os homens de hoje perderam-se no número e foram armadilhados pelo cálculo, mas a vida do espírito começa quando a quantidade cede o lugar à qualidade e todo o cálculo se torna não apenas uma ociosidade mas um perigo vital.

terça-feira, 10 de março de 2015

O corpo e o espírito

 Georgia O'keeffe - Abstraction, blue (1927)

Um equívoco corrente sobre a vida espiritual assenta na ideia de que vida do espírito e abstracção conceptual são expressões sinónimas. A abstracção conceptual vive da desencarnação e da descorporalização da realidade. A vida do espírito, porém, ocorre na carne e no corpo, afirma-os e eleva-os. Não por acaso o cristianismo proclamou, desde muito cedo, que o corpo era o templo do Espírito Santo.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Do jogo da conversão

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

O uso da palavra conversão, nos jogos de linguagem da religião, conduziu a uma degradação da palavra, de tal forma que, para além de um mero sentimento moral, nada mais se pensa nela. E contudo a conversão implica um novo olhar sobre as coisas e um novo modo de ser. A arte, por exemplo, é um jogo de conversões, onde se aproximam coisas que, pelo hábito, as temos como separadas. Converter-se é, então, um processo de aproximar o inaproximável, de, por exemplo, ver o inimigo como um próximo.

domingo, 8 de março de 2015

O silêncio dos eremitas

Albano Vitturi - Gli erimiti di Faida (1934)

Penso muitas vezes no silencioso destino desses eremitas que se afastam dos homens não por misantropia mas por amor. Por amor a Deus, certamente, mas também à humanidade e, por estranho que pareça, ao mundo. É como se no silêncio meditativo se tecesse uma rede infinita que protege a humanidade contra os  seus desvarios e evita que o mundo se afunde no caos.

sábado, 7 de março de 2015

Haikai do Viandante (224)

Jackson Pollock - Autumn Rhythm - Number 30 (1950)

na queda da folha
descubro o ritmo do outono
a luz que te olha

sexta-feira, 6 de março de 2015

Do uno e do múltiplo

Filippo de Pisis - Paesaggio alpestre con case (1927)

Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma. (Bernardo Soares, Livro do Desassossego)

Se habitamos perto do mar, observamos em tudo a multiplicidade, e o próprio viandante se descobre múltiplo, ao descobrir em cada emoção, em cada sensação, em cada sentimento uma alma e uma personalidade diferentes. Ao subir a montanha, o que parecia múltiplo torna-se uno e ele próprio, no ar rarefeito que o circunda, descobre-se como uma unidade secreta, que só na altura se revela e se abre para o seu mistério.  

quinta-feira, 5 de março de 2015

Poemas do Viandante (499)

Pierre-Albert Marquet - Pino en Argel (1932)

499. o ondular dos pinheiros

o ondular dos pinheiros
dentro do silêncio

o bálsamo das tuas mãos
sobre a minha pele

são a casa onde habito
água luz memória

quarta-feira, 4 de março de 2015

O tigre e o caçador

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Primeiro, o viandante pensa que o mais importante é enfrentar o tigre, caçá-lo e assim domar a natureza. Depois, convence-se de que o tigre não está fora mas dentro de si, que é aí, na natureza íntima, que é preciso matá-lo. Por fim, descobre que a única coisa a fazer é cavalgar o tigre, dançar com aquilo que o envolve e esquecer a caça, pois o tigre e o caçador são um e o mesmo.

terça-feira, 3 de março de 2015

Sobre a água

Joaquín Mir - Aguas de Moguda

A água serve como metáfora central na caracterização da contemporaneidade feita pelo sociólogo Zygmunt Bauman. De certa forma, esta metáfora não é apenas descritiva. Contém uma avaliação negativa da fluidez do mundo. Contudo, antes de ser metáfora, a água é símbolo e, como tal, traz em si uma ambiguidade essencial. Se pode ser vista negativamente como destruição dos laços sólidos que ligam os homens, também pode ser vista como a liberdade do espírito que não se apega a nenhuma configuração relativa, submergindo-as e libertando-se, encontrando sempre e sempre novos caminhos.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A natureza da viagem

Lucien Coutaud - Souvenir d'un voyage (1963)

O Senhor disse a Abraão: Deixa a tua terra, a tua família, a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar. (Génesis, 12:1)

Qual a natureza da viagem que toda a vida é ou deve ser? Em primeiro lugar, é um abandono, um corte, a ruptura com o passado, com o já instituído. Esvaziar-se de tudo o que está dado. Depois, não saber para onde se vai, não haver, ao partir, qualquer indicação do destino. Apenas uma voz fala e a promessa que ela institui é a única bússola do viandante. A terra que o espera não depende dele, da sua vontade ou inteligência. Depende da promessa escutada e da revelação que o aguarda. Esta é a viagem, o resto é turismo.

domingo, 1 de março de 2015

Haikai do Viandante (223)

Pier Luigi Lavagnino - Memória (1989)

estranha memória
a que guarda entre cores
o anjo da história