quarta-feira, 30 de abril de 2008

O guarda fronteiriço

O que resiste dentro de mim a um abandono ao que a Providência me enviar? Talvez um medo, o pavor do desconhecido, o terror de me perder. Se estou perdido, não o estou ainda suficientemente para não ter medo de me perder ainda mais numa noite da qual não diviso os contornos. Sim, é sempre possível dizer que a exterioridade impede o caminho para os decretos da Providência, mas haverá de facto uma cisão entre interior e exterior, entre aquilo que digo pertencer-me e o que está para além do círculo que julgo ser a minha pessoa? Enquanto houver um interior e um exterior, terei sempre o meu lugar assegurado. E que lugar será esse? O de guarda fronteiriço. Este administra o trânsito entre os dois lugares e toda a sua existência está fundada no serviço que assim presta. Mas se não houver fronteira, não haverá um dentro e um fora, nem guarda fronteiriço. Mas se eu não sou o guarda fronteiriço, o que serei? O que farei se a fronteira for abolida? Nela ainda encontro um lugar para descansar dos caminhos em que me perco; sem ela tudo se torna indiferenciado e não me resta mais do que me abandonar à sorte que me for enviada. A fronteira é a esperança do guarda fronteiriço perante o terror de se perder.

terça-feira, 29 de abril de 2008

O alimento da fé

De que se alimenta a fé? De uma exaltação do ânimo? Da convicção da razão? Do sentimento inabalável? Não, a fé que se alimente de tudo isso não é fé, apenas uma crença que, apesar de poder ser exaltada, não deixa de ser superficial. É esta fé que persegue o próximo e que, tendo o poder da espada na mão, não hesitará a fazer correr o sangue. O motor da fé não pode ser outra coisa senão a dúvida, a incerteza, a fragilidade da convicção. Só elas podem impelir o coração mais para diante, para uma experiência mais funda da palavra que nos fez ser. A fé alimenta-se assim da escuta. Ora aquele que se põe à escuta nem sempre ouvirá. Umas vezes porque está distraído, outras porque aquele que fala suspende a voz para deixar em suspenso o que escuta, desenhar-lhe um espaço maior para duvidar e, assim, com mais determinação fazer crescer a fé.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sou uma palavra dita

Sou uma palavra dita por Deus, diz Thomas Merton, depois acrescenta: Poderá Deus dizer uma palavra sem sentido? Não, Deus não diz palavras insignificantes, mas para muitos, como para mim, é obscura a palavra proferida. O que significa a palavra que eu sou e que me constitui? Se me debruço sobre a minha vida nada de sólido encontro e nada me permite desocultar o mistério dessa palavra. Há desejos em mim, sempre os houve, mas esses desejos nunca se apresentaram com força e coerência suficientes para moverem a minha vontade a realizá-los. Quem nunca desejou a glória do poder ou a do fazer? No entanto, esses pequenos desejos, pequenos porque não se constituíram como móbiles poderosos, nunca me moveram para uma acção determinada e consequente. Talvez não fossem a interpretação da palavra divina que me fez ser. Assim perdido, incapaz de compreender o significado profundo, me fui retirando de tudo o que é específico da realização do desejo e da ambição do homem. Resta-me apenas aquilo que a necessidade me impõe. Mas a palavra, aquela que me constitui no mais fundo de mim, continua, para a minha consciência, sem significado. Será a palavra de Deus que me fez vir à existência a palavra da minha insignificância, do meu sem sentido?

domingo, 27 de abril de 2008

Sem Pátria

O dia passou e eu passei com ele preso ao tempo que corre. Sentado, perdi-me num mar de inutilidades, pequenas servidões a que o hábito me verga, incapaz de um gesto libertador. O coração sonolento deixou-se arrastar e a vontade, frágil vontade, foi impotente para marcar um rumo. Assim caminha o exilado na terra que não conhece, umas vezes vai por aqui, mas logo muda de direcção, recua e procura outro caminho, para, passado instantes, se desgostar da nova senda e procurar outra e mais outra, como se não tivesse pátria para o acolher.

sábado, 26 de abril de 2008

Acção mundana

Estar no mundo e abrir-se àquilo que fora do mundo é mais do que toda a vida mundana. Os negócios que a vida quotidiana impõe são ao mesmo tempo duros obstáculos a quem espera encontrar mais do que o mero tempo que passa e oportunidades para, em cada acção que se efectua, nos abrirmos a qualquer coisa que nos transcende sem que seja de nós diferente. A ânsia, porém, com que nos damos e a avidez que nasce do desejo do êxito obscurecem a fonte de onde toda a acção tira a energia, o sentido e a graça da sua consumação.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

A porta fechada

Há uma indolência que me impede de abrir caminho na floresta. De onde nasce? Por vezes julgo que a sua origem está nas coisas exteriores e na sedução com se apresentam ao meu olhar. Depois reconsidero e é em mim, descubro, que ela está. As coisas exteriores e o seu fascínio só me obscurecem porque há algo obscuro em mim. No centro do meu ser, há uma porta que se fecha e a luz que por ela deveria entrar não entra. O peso da porta amolece, sim, é esta a palavra certa, a vontade e o corpo deixa-se cair num torpor sem significado e sem horizonte. Nesse torpor, vou perdendo a vida, prendendo-me a isto e àquilo, como se tudo isso me distraísse da porta fechada que me pesa dentro do coração.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Realizar a natureza

Ninguém se torna contemplativo. Ou se nasce contemplativo ou não. Ser contemplativo não é qualquer coisa que se possa adquirir como a riqueza ou a erudição. Ser contemplativo é uma vocação e uma forma de ser que não depende da nossa vontade. O mesmo se passa com o homem de acção. Só num mundo pleno de confusão se pode acreditar que podemos escolher e manipular a natureza do que somos. Aquilo que somos é uma dádiva e a realização da nossa natureza é a única forma de retribuição que permite mostrar gratidão pela graça de sermos o que somos. Mas a realização de si não é a realização dos nossos desejos, nem a concretização das ilusões que construímos sobre nós. A realização é o deixar vir à luz a natureza que gratuitamente nos foi dada.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Oração da manhã

Dizia o velho Hegel que a leitura dos matutinos é a oração da manhã do homem moderno. Dois séculos passaram sobre o dito e à imprensa veio juntar-se um sem fim de meios de comunicação. Mas a que Deus ora o homem moderno? Quando me levanto e abro a Internet e percorro os jornais e blogues o que descubro? Sim, pode-se sempre cultuar o espírito do tempo, mas não é bem ele que aparece em tudo o que é, para o homem moderno, motivo de oração matinal. O que aparece é a espuma. Não é a espuma, porém, uma forma de ocultação da água? O que se esconderá nessa espuma? A que deus oraremos nós homens ainda modernos? Não valerá mais voltar à ingenuidade do homem tradicional e invocar o Deus bíblico? Talvez já não nos seja consentida tanta ingenuidade e não tenhamos outros remédio do que o politeísmo que a comunicação nos traz de manhã, à tarde e à noite. Mas se Cristo aqui estivesse como e a quem oraria ele pela manhã? Mas não é Ele que cada um de nós é?

terça-feira, 22 de abril de 2008

A alienação da vida ordinária

A dificuldade maior reside em viver a vida ordinária sem que esta não seja a mais pura das alienações. Os fenómenos da vida corrente, as preocupações do trabalho, as exigências da vida partilhada com outra pessoa, a atenção ao destino dos filhos, as pequenas e grandes paixões que a vida foi semeando no caminho constituem-se como formas de desatenção e de perda. O fundamental não será construir uma máscara sólida e um centro racional de ataque às solicitações da existência, o fundamental será encontrar o caminho que permita estar atento ao essencial, mesmo quando se está comprometido na vida quotidiana. Mas o espírito é tão frágil que a cada momento sucumbe nas solicitações da vida, e de cada pequena coisa faz um obstáculo intransponível para o caminho para si mesmo. A sabedoria residiria em ser capaz de fazer da vida quotidiana a alavanca para a contemplação contínua do que é essencial. Mas quem será assim tão sábio?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O sexo

Sob o fascínio do sexo agitamo-nos como se ele pudesse trazer mais do que uma mera distracção e a fugaz compensação de alguns momentos de esquecimento de si. Entregue ao outro, nos braços da pessoa amada, aquele que vagueia neste mundo recebe um pequeno lenitivo para a dor de não saber o caminho. Mas o fragor com que corpos e espíritos se entregam, o desejo imaculado de fusão, a indistinção entre o eu e o mundo que a absorção no corpo amado permite, tudo isso quebra-se mal os corpos se apartam, mesmo que seja para retornarem ao ardor primeiro. Há na sexualidade humana uma promessa maior que as possibilidades do homem. É como se, por instantes, os amantes pudessem descortinar um outro mundo, mas mal os seus pés se põem a caminho já esse mundo desapareceu. Resta uma nostalgia agitada, um retorno infinito, uma condenação de Sísifo.

Caminho da salvação

O que entendo quando oiço palavras como caminho da salvação? Fico perplexo e nessa confusão que me tolhe o raciocínio deixo a mente deambular até esquecer esses sons magníficos. Mas eles lá ficam, prendem o espírito com as suas curvas bamboleantes, sempre prontos para saltar para cima do viandante. Aquele que está perdido aspira a salvar-se, mas o que quererá ele salvar? Salvar-se a si? Talvez. Mas não será este si a perdição de que se quer salvar? Não há caminho da salvação para quem deambula perdido pela vida, pois encontrar um rumo ainda é perder-se nessa mesma vida e ofuscar-se no trono que então conquistará. Aquele que anda perdido apenas terá de ser perder mais e mais, ir mais fundo para além de todas as perdições, para o sítio de todos os esquecimentos. Haverá coragem para tão dura jornada?

domingo, 20 de abril de 2008

Da resistência ao elogio

Um pequeno elogio e logo o nosso querido eu se engrandece e aspira a ser maior do que a mais elevada montanha. Como aprender a não levar a sério os elogios? Como aprender a ser delicado e grato com o elogiador e ao mesmo tempo não sentir uma ponta de orgulho no risível feito que nos é atribuído? Saber que não se é nada seria o melhor caminho, mas esse saber terá de ser mais fundo do que o saber da razão, deverá ser uma saber enraizado nos intestinos e nos ossos e no coração e no sangue. Mas o bem ou a beleza presente naquilo que nos é atribuído será propriedade nossa? Aquilo que nos é mais próprio será, porventura, o que é menos nosso.

No mar da distracção

Anoitece e o dia passou e passou como todos os dias passam por mim: desperdiçado e sem fim. Perco-me a cada instante naquilo que me distrai e toda a minha vida se passa num vago mar de distracções. Pudesse eu ainda permanecer em silêncio e deixar vir um súbito desejo de oração e entregar o meu coração a algo mais do que aquilo que, fora de mim, me chama e me exige uma obediência férrea. Olho para estas horas que passaram e vejo-me passar por elas como se todo o tempo me fosse dado e nada, na frágil vontade que me coube, é capaz de dobrar a atenção e fixá-la para além dos pequenos nadas, que lançam uma cortina de fumo onde me perco e perco a vida, talvez por ter perdido há muito a luz de Deus.

A máscara colada ao rosto

Se me procuro é ainda a mim que me procuro? Não serei eu o verdadeiro obstáculo que se abre no meu caminho. Se quero ser como os outros não é para que brilhe ainda mais alto do que todos esses outros? Há muito que descobri a imensa falácia que é o meu eu, a sua impotência mundana e os desejos, talvez débeis, de me engrandecer. Caminho dividido entre tudo aquilo que, para o espectáculo do mundo, desejei ser e nunca fui, mas também dividido entre esse eu que aspira à glória dos olhares dos outros e uma secreta palavra que sopra dentro de mim, vinda sei lá de onde, e que me diz da vacuidade dos meus desejos. Sem força para sustentar uma máscara que me contente, sem força para tudo abandonar e seguir a palavra que me chama e me fala do nada onde caminho, do nada de tudo o que desejei, do nada que sou nessa busca de uma máscara que me engrandeça perante os outros e, mais do que tudo isso, me eleve aos meus próprios olhos. Mas como arrancar a medíocre máscara que o tempo, tanto tempo já, colou sobre a pele do rosto? Cada vez que tento puxá-la, uma dor absurda toma conta de mim e os instintos saltam a gritar pela noite fora.

sábado, 19 de abril de 2008

Afastamento de Deus

Às vezes sonho com um retorno a essas horas da infância onde não havia entre mim e Deus uma tão grande distância. Tudo se harmonizava nesse jardim e os meus passos, que eu não sabia serem meus ou sequer passos, caminhavam pelo mundo fora, seguros da sua meta. Um dia, sem dar por isso, tudo se perdeu, ou tudo já estaria perdido e eu ainda não o sabia, soube-o então, soube-o primeiro sem o saber e, com o passar do tempo, fui sabendo cada vez com mais ferocidade. Foi no momento eu que quis ser como os outros, como se estes fossem de alguma maneira, ou soubessem sequer o que seriam se fossem alguma coisa. Nessa hora, Deus afastou-se de mim. Minto. Nessa hora, afastei-me de Deus e a cada dia que passava mais me afastava d’Ele, até Ele não ser mais do que recordação, depois ideia ou sombra, por fim o traço que escrevo no papel ou o suspiro que sai de entre os lábios. Agora não sei o caminho de casa. Quando me dizem que essa casa nunca existiu, assinto com a cabeça, mas o meu coração recusa-se a acreditar.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Confissão

Terá a minha alma a “mais vil de todas as necessidades”, a necessidade da confissão, a de “ser exterior”? Mas a confissão, seja qual for a modalidade que tome, não será antes o reconhecer de um desconhecimento? Só se confessa aquele que se desconhece e, nesse desconhecimento, decide procurar-se. Confessar-se é construir um texto. Melhor, a confissão é um mapa do desespero e um indício da ignorância. Se escrevo como se me confessasse não é para me exteriorizar. Escrevo para descobrir um sinal, talvez uma breve indicação do caminho para mim. Não, a confissão é apenas um espelho sombrio onde a alma errante e incógnita espera descobrir o caminho que do mundo leva a si.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A folha empurrada pelo vento

Poderei desfazer-me de mim, esquecer-me e ir estrada fora ao encontro do que vier? E o que pode vir desse lugar a que deram o nome, ouvi dizer, de nenhures? De lá é o nada que vem com as suas vestes brilhantes e acena-me com uma mão tão frágil que o meu coração quase se deixa tocar. O corpo, porém, impele-me na caminhada e ao ir vejo sempre e sempre coisas novas e com elas encho o ânimo e julgo então estar fora de perigo. Ao longe, fica nenhures, mas já nada em mim o lembra e aquela mão, que quase me tocava, nem recordação já chega a ser. Talvez não seja mais do que a folha que pelo Outono, empurrada pelo vento, se desprende e cai.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Perdido no caminho

A jornada já vai longa, mas o caminho ainda não se mostrou. Procuro aqui e ali, mas é sempre a decepção que vem. Por vezes, sigo sem saber para onde; outras, determino com exactidão a estrada. Mas perco-me sempre, como se uma luz me faltasse e o discernimento fosse tão frágil como uma caravela perdida no mar em procela. Sento-me e escrevo, escrevo sobre a falta de norte, escrevo cansado, escrevo iluminado pela chuva que lá fora se derrama sobre as avenidas. Há muito que me perdi no caminho que seria o meu, se o tivesse, ou se me fosse dado.