quarta-feira, 31 de julho de 2019

Pintura e haikus (11)

Ken Howard, High water, Summer, 1996
No meio do mar,
o Verão cresce na água.
Os homens renascem.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Micronarrativa (22) Impaciência

Alexander Rodchenko, Girl with a Leica, 1934
Sentada, ela esperou. Enquanto havia sol, pequenos quadrados de luz iluminavam-na furtivamente. Nesses momentos, a esperança não a abandonara. Depois, fez-se noite e ela confundiu-se com a escuridão. Aquele por quem esperava passou então por ali, mas não a viu. Impaciente, continuou o caminho, esperançado em encontrá-la num outro sítio onde ela nunca haveria de estar.

domingo, 28 de julho de 2019

Poesia do Viandante (732)

Yoriyasu Masuda - Ambiente espiritual (1996)
732. o espírito espuma

o espírito espuma
na boca
de orvalho
floresce envolto
em auroras
de cânhamo e sisal
declina
no incenso
do carvão a arder

(28/12/2016)

Diálogos morais 16. Tolerância

Auguste Rodin and Rose Beuret, Meudon, 1893
- Como podes gostar tanto de cães?
- Mantêm-me vivo.
- Vivo?
- Vivo rodeado de matéria inerte a que dou vida...
- E essa não te chega?
- Não, preciso de ver os cães, de os sentir.
- Para quê?
- Para nada, apenas porque estão vivos.
- Ah, se eles fossem de mármore, ainda poderia tolerá-los.

sábado, 27 de julho de 2019

Impressões 36. Estranhos lugares

Paul Strand, Street, Tetuan, Morocco, 1962

Há lugares - que estranhos são - onde só aquilo que é secreto se pode encontrar. Não se procure ali a claridade nem o que na claridade se dá a ver. Ninguém o achará. Sombras, vultos, vestígios encontram nesses locais a sua pátria. Se os espreitamos, vemo-los como se fossem o rasto de um cometa. Se queremos observá-los de frente, encontramos apenas o vazio que nos enche a alma.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Haikai do Viandante (375)

Claude Monet, Summer, Field of Poppies, 1875
Campos de papoilas
são fogos de luz na terra.
Rumor de Verão.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

A rapariga da flor

Chas. A. Hellmuth, Study of Miss A., 1921
Lembro-me muito bem dela. Como poderia ser de outra maneira? O rosto transbordava de melancolia, o que não deixava ninguém indiferente. Não havia rapaz que não estivesse apaixonado por ela. Acabou por casar com um janota - hoje ninguém usa essa palavra, eu sei -, um daqueles homens inconstantes, quase femininos na preocupação com a aparência. Conquistou-a ao oferecer-lhe uma flor. Ela pegou nela, encostou-a ao coração e rendeu-se. Ele abandonou-a passados alguns meses. O que lhe aconteceu, pergunta-me. Não sei muito bem. Há quem diga que foi para outra cidade e que todos os dias compra uma flor que encosta ao peito, enquanto passeia melancólica com ar ausente. Não sei se é verdade.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Poesia do Viandante (731)

William Congdon - Winter 3 (Exeter-New Hampshire) (1956)
731. alguém chega

alguém chega
coberto
de silêncio
aos ombros
o manto
do inverno
uma trova
de neve
sobre o néon
dos nenúfares

(28/12/2016)

terça-feira, 23 de julho de 2019

Diálogos morais 15. Cegueira

Ernst Haas, Homecoming Prisoners, Vienna, 1947

- Conhece-o, conhece-o?
- (...)
- É o meu filho, viu-o?
- (...)
- Ninguém fala comigo.
- (...)
- Parece que tenho peste. Conhece-o?
- (...)
- Outro que passa. Ninguém vê a minha dor. Viu-o?
- (...)
- Ficaram cegos estes soldados. Viu-o?
- (...)
- Como o teriam podido ver se são cegos.

domingo, 21 de julho de 2019

Diálogos morais 14. Caminho

John Boyd, Couple snowshoeing, 1907
- Está frio.
- Não mais que ontem.
- Sim, mas a cada dia que passa tudo se torna mais difícil.
- É verdade, o caminho nunca mais acaba.
- Julgo que estás errado.
- Estarei?
- Chegará o momento em que o próprio caminho desaparecerá.

sábado, 20 de julho de 2019

Micronarrativa (21) O peso da sabedoria

Petr VelkoborskýLittle schoolboy, 1987
A sabedoria é uma coisa boa, muito boa. É o que me dizem lá em casa e a professora não pára de o repetir. Quase acreditei, mas descobri que era uma afirmação falsa, palavras para enganar crianças. A sabedoria é uma coisa pesada, tão pesada que, ao entrar no nosso cérebro, torna-o cada vez mais pesado. Quando estudamos demais corremos o risco de não conseguir levantar a cabeça. Temos de ter cuidado. Nada pior que um homem que não pode erguer a cabeça.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Poesia do Viandante (730)

William Congdon - Destroyed City (1949).
730. cidades circuncidadas


cidades circuncidadas
pelo terror
púrpura perpétua
engalanada de ervas
e destroços
cidades cantadas
na tômbola
sinuosa da solidão
castas cidades
cidades de cimento e sal

(28/12/2016)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

O sal do silêncio (22)

Harry Callahan, Chicago, ca.1950
As aves partiram, os ninhos foram deixados ao abandono. O silêncio cresceu e, como sal, depositou-se na brancura da neve. Árvores irrompem da terra, elevam-se aos céus. Os seus ramos enegrecidos e descarnados esperam. O tempo passa vagaroso, movido pelo lento murmúrio com que o vento em vão procura as folhas que deseja acariciar.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Micronarrativa (19) Vingança

Cecil Beaton, Three models dressed in Ladurée macaron colours, 1948
Uma lê, a outra reza. De que estou à espera? Sempre podia pegar num livro ou fazer uma oração, mas ler para quê e rezar a quem? Aguardo que se cansem. Quando quiserem falar comigo, direi que me dói a cabeça, levanto-me e deixo-as aí, abandonadas e entregues aos devaneios com que me esquecem.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Haikai do Viandante (374)

Clara Gangutia, Arco-íris, 1991
Sob o arco-íris
a vida corre em silêncio.
Da terra ao céu.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Poesia do Viandante (729)

Adolph Gottlieb - Amanhecer (1971)
729. no ardor do astro

no ardor do astro
o dia amanhece
transborda de luz
abre a úlcera
e urde
os tentáculos
que trarão
o navio da noite

(28/12/2016)

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Diálogos morais 13. Escuta

Josef Sudek, St. Vitus cathedral, Prague, Czech Republic, ca. 1926-27
- Ouviu?
- Não, não ouvi nada.
- Apenas um rumor, um sussurro.
- Talvez seja algum animal, um rato, um esquilo perdido.
- Não, o som desses conheço-o muito bem.
- ...
- Olhe a luz, veja como os raios penetram na catedral.
- Sim, mas não oiço nada.
- Se não consegue escutar a luz, o que conseguirá ouvir?

terça-feira, 9 de julho de 2019

Micronarrativa (18) O medo do encontro

Guy Bourdin, Fashion photography, 1970s
Ela queria sentar-se na sua própria sombra, mas um medo ancestral impedia-a. O que seria dela se, esmagada, a sombra se retirasse e ela, sem defesa ou saída, ficasse abandonada à tirania da luz? Então, quando o desejo a impelia, segurava-se a qualquer coisa que impedisse o corpo e a sombra de se encontrarem.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Haikai do Viandante (373)

Richard K. Hofmeister, Castle Enshrouded by Mist, 1979
Névoa e silêncio
cobrem o velho castelo.
Chão de pedra fria.

domingo, 7 de julho de 2019

Diálogos morais 12. Asas

Andrzej Mroczek - Nuit sur la Place du marché principal de Cracovie, 2004, (Sculptures d’Igor MITORAJ)
- Também te arrancaram os braços.
- É verdade.
- E as asas, o que é feito delas?
- Nunca as tive.
- O sexo, porém, sempre to permitiram.
- Não tenho a certeza.
- Não?
- Por causa dele, disseram-me, nunca teria asas.

sábado, 6 de julho de 2019

Poesia do Viandante (728)

Julian Schnabel - Always Virtue (1988)
728. virtudes são vírgulas

virtudes são vírgulas
no vendaval
do vício
                fogos-fátuos
na fogueira
da folhagem
                reticências
no rumorejar
do ruído

(28/12/2016)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O sal do silêncio (21)

Eve Arnold, Silvana Mangano at the Museum of Modern Art, New York, 1956
Há rostos silenciosos, e no silêncio que os habita esconde-se a luz de todos os mistérios do mundo. Em nenhuns outros se é capaz de imaginar uma personagem da tragédia grega. O silêncio é a máscara que permite que a voz do destino fale para o espectador atónito e que, quase incrédulo, espera a revelação da verdade.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Meditação Breve (105) De pernas para o ar

John Vachon, Children playing at a playground, Irwinville school, Georgia, 1938
Por vezes, como se dentro delas falasse um forte instinto, as crianças sentem que alguma coisa não está bem. Então, colocam-se de pernas para o ar e esperam, não sem razão, que a verdade lhes seja revelada.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Haikai do Viandante (372)

George Pierre Seurat, Landscape with Horse, 1882
Um cavalo come
a erva da Primavera.
O homem espera.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Micronarrativa (17) A sombra do desejo

Ray K. Metzker, Philadelphia, 1964
Ela nunca sabia quem iria encontrar ao virar de uma esquina. Umas vezes, não estava lá ninguém. Outras, passava por conhecidos e desconhecidos. O encontro mais decisivo foi aquele em que se deparou com a sombra do seu próprio desejo.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Poesia do Viandante (727)

Norman Narotzky, Last Light, 1990
727. last light in the sky

last light in the sky
luz e lírios
cisnes selvagens
desdobram-se
nas docas
lançam âncora
na areia lívida
the livid sand
dos areais da língua

(28/12/2016)