quarta-feira, 29 de abril de 2020

Haikai do Viandante (392)

Lee Miller, The Shadow of the Great Pyramid, Egypt, 1938
Da grande pirâmide,
a sombra cai sobre o mundo.
Tempo de declínio.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Meditação Breve (125) Da leveza

Robert Mapplethorpe, Baby’s Breath, 1982
Em tudo o que é leve pensamos a fuga à nossa condição. O corpo, sujeito às férreas determinações da gravidade, aspira à natureza dos pássaros ou à insubstancialidade dos anjos, como se isso o regatasse de uma natureza decaída, sujeita à dor e à morte.

sábado, 25 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 17

Tal-Coat, [Paisaje], 1954

A cidade esconde-se dos pássaros,
deixa-os perdidos
em volteios de sombra e sangue.

A cidade ergue-se em segredos
suspensos nos jardins
trazidos pelo fim do Inverno.

A cidade escorre em praças vazias,
tragada pelo tumulto
dos meus passos a fervilhar de ambrosia.

Março de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Impressões 51. A realidade

William Henry Fox Talbot, The Tower of Lacock Abbey, 1845
Tocada pelo tempo, a realidade construída pela mão dos homens não sofre erosão, mas é sujeita a um longo processo de desvanecimento, no qual vai perdendo a cor, até que desaparece no horizonte onde nada se distingue.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Histórias sem nexo 7. Dualidades

Maurice-Louis Branger, A la terrasse d’un café, Paris, vers 1925
Duas damas nada domésticas dão dois dedos de conversa. Deambulam desgostos, desenham doidices, descrevem dúvidas. Dão-se à doce dolência nascida da despótica desgraça do desejo.

domingo, 19 de abril de 2020

Haikai do Viandante (391)

Ansel Adams, El Capitan, Winter, Sunrise, Yosemite National Park, California, 1968
O amanhecer
desceu sobre a fria floresta.
Sombras da aurora.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Meditação Breve (124) O uno e o múltiplo

Harold Edgerton, Stroboscopic Study of Man Hitting Tennis Ball, 1949
Não somos um nem somos muitos. Somos apenas o jogo contínuo entre a unidade que desejamos e a multiplicidade em que nos dividimos.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 16

Jacinta Gil Roncalés, Composición en fríos, 1991

Deixemos um louvor à terra,
ao aroma
das primeiras chuvas,
os cardos a despontar nos dedos da noite.

Somos exilados e em peregrinação
levamos no vazio
os círios colhidos
em silêncio no lago da memória.

Na neve há uma coroa de água,
a brancura
oblíqua da alma,
os lábios a latir na luz do coração.

Março de 2020

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Micronarrativa (31) A verdade

Edward Weston, Meraux Plantation House, Louisiana, 1941
Durante muito tempo foi um lugar vibrante. As gerações sucediam-se, presas à certeza da continuidade. A casa era renovada ao gosto de cada época, sem que perdesse a sua unidade, a luz que a guiava. O último membro da família, porém, morreu sem filhos nem herdeiros. A estirpe cansou-se e a casa encontrou a sua verdade no abandono e na ruína.

sábado, 11 de abril de 2020

Pintura e haikus (16)

Carlo Carra, Casa Abbandonata, 1930
Casa abandonada
no silêncio da floresta.
Tempo de passagem.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Cansaço

Duane Michals, Empty New York, 1964
Não, está enganado. Não foi nenhuma ameaça. Não havia guerra nem epidemias no horizonte, a vida corria como sempre. As pessoas cansaram-se. Sim, cansaram-se das outras, do trânsito, do ar irrespirável e foram-se embora. A cidade foi-se esvaziando e hoje não tem mais moradores do que uma pequena aldeia. Para onde foram? Ninguém sabe. Os que aqui ficaram não se interessaram pelo destino dos que partiram. Não temos televisão, nem imprensa, não ouvimos rádio. Caminhamos pelas ruas, observamos os lugares vazios e podem passar-se meses sem que avistemos outro ser humano. Raramente trocamos palavras. Se alguém morre, o mais certo é que não haja quem disso se aperceba. Também nós estamos cansados.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Diálogos morais 36. O tempo

Constantine Manos, Shepherds with goat. Crete, Greece, 1964
- O que esperas?
- Que o tempo passe.
- Não é isso que ele faz continuamente?
- Nem sempre.
- Nem sempre?
- O tempo existe para nos contrariar. Quanto mais desejamos que passe, mais ele permanece imóvel.
- Não é verdade, olha um  relógio. Não brinca com o nosso desejo, avança indiferente e inexorável.
- Um relógio não é o tempo.

domingo, 5 de abril de 2020

A Sarça Ardente - 15

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

A discórdia nupcial das nuvens
ressoa em trovejos
na lonjura sem medida dos campos.

Cavalos pastam silêncios de erva
e uma sirene ecoa
ao longe, sobre a caruma dos pinheiros.

O ardor da solidão chama por mim,
enquanto espero
do anjo o anúncio do alvor da aurora.

Março de 2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Haikai do Viandante (390)

Robert Mapplethorpe, Orchid and Leaf in White Vase, 1982
Contra a escuridão,
em vaso branco floresce
a luz duma orquídea.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem entre ruínas

Dmitri Kessel, A man walking through the remains of an ancient temple in Athens. 1944
Todas as manhãs era visto a passear entre as ruínas. Verão ou Inverno, chovesse ou fizesse sol, ao raiar da aurora ele aparecia e passeava, durante umas horas, para cá e para lá. Um passo lento, parecia querer absorver o espírito do lugar em cada aspiração. Chamavam-lhe, não sem ironia, o homem entre ruínas. Não se conhece quem tenha trocado alguma palavra com ele, ou quem dele se tivesse aproximado. Formou-se uma tradição de distanciamento e era nessa distância que ele ia e vinha. Um dia, desavisado, um forasteiro dirigiu-lhe a palavra. Ele estancou, olhou-o perplexo e todo o seu corpo se tornou imponderável. À vista de todos, ergueu-se aos céus e desapareceu atrás de uma nuvem.