quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (307)

Wassily Kandinsky - Autumn in Bavaria (1908)

fogos de outono
descem frios nas folhas mortas
queda e solidão

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A verdadeira face

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

Raramente se pensa, ao valorizar a dimensão ética da pessoa, a presença nela, como pertencente ao seu núcleo, da máscara social - a dimensão da persona - que possui o duplo efeito de proteger o indivíduo nos seus contactos sociais e de distorcer a verdadeira face que se esconde sob a máscara e aniquila a autenticidade.  Deste ponto de vista, a pessoa é já uma inautenticidade. A vida espiritual é a viagem que conduz da máscara à verdadeira face, da pessoa ao si-mesmo. O perigo, porém, é grande, pois a verdadeira face pode ser sentida pelo outro como uma ameaça terrível e pelo próprio como uma fragilidade inultrapassável.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, 
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; 
assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Não por acaso, o vento - ou o sopro - é tomado como símbolo da vida espiritual. João diz-nos que nada sabemos daqueles que nascem do espírito. Não sabemos nem a sua origem nem o seu destino. Estão subtraídos à dinâmica da história, como se estivessem acima e para além dela. O vento como símbolo do espírito e da vida espiritual diz-nos ainda outra coisa. O vento suave pode refrescar e tornar a existência aprazível, mas o vendaval tem o poder de destruir. É um equívoco olhar para a vida espiritual como um mero exercício de consolação. Ela é também, e muitas  vezes, a violência que destrói os edifícios anquilosados onde tomou forma e que já não contêm a sua infinita ânsia de liberdade.

domingo, 27 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (592)

Georgia O'keeffe - Black abstraction (1927)

592. negro sobre negro

negro sobre negro
uma sombra
de azeviche
cai
na brancura do papel
e inunda
de abstracção
as asas brancas
e pálidas
do anjo perdido
no negror da noite

(08/11/2016)

sábado, 26 de novembro de 2016

Entre dois mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Houve uma época em que era moda falar da condição humana. Como todas as modas, também essa passou. Hoje em dia ninguém fala da condição humana. Não é que a humanidade tivesse perdido a sua condição, esta, porém, deixou de lhe interessar e tornou-se-lhe estranha. A condição do homem é a de estar entre dois mundos. Entre o visível e o invisível, como referia Platão no Fédon. Entre o tempo e a eternidade. Entre a terra e o céu, segundo a tradição do taoismo. Estar entre dois mundos não é apenas possuir um lugar, mas também uma função, a função de mediador, aquele que estabelece ligação entre o que está em baixo e o que está no alto. Esta é a condição humana.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (306)

Gustave Caillebotte - Rua de Paris em tempo chuvoso (1877)

envolta em chuva
a noite cai na cidade
água e solidão

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Armar espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Nunca os processos de educação dos seres humanos preparam estes para a liberdade espiritual. Essa liberdade, pela sua vastidão e pela sua profundidade, quando suspeitada, é sentida como um perigo. O espírito tem medo de si próprio, sente-se como uma ameaça para a ingénua tranquilidade em que foi educado. Como o agricultor que vê as suas colheitas ameaçadas pela liberdade das aves, o espírito entretém-se a armar espantalhos para se defender de si mesmo e evitar o confronto com o terrível que a sua liberdade traz.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (591)

Julião Sarmento - Amazonas (1992)

591. semeio flores e florestas

semeio flores e florestas
nas margens
do rio amazonas
onde vestidas de luz
e espadas
cavalgam
mulheres de torso
azul
e olhos outonados
na face fria
de uma amazona

(22/10/2016)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A voz

Giovanni Boldini - La Cantante Mondane (c. 1884)

O público estava em êxtase, preso naquela voz, como se só ela existisse. A diva, porém, tinha o ar de quem já não podia ver o pianista e assustava-se até com a própria voz. Olhava as pessoas como se formassem um bando de harpias e tremia. Por vezes, parecia suspender o canto, emudecer, mas não. O que me espantou foi ninguém ter dado por nada quando o corpo dela ficou hirto. Depois estremeceu e começou a apagar-se. Primeiro, perdeu os contornos, a seguir tornou-se uma sombra, uma névoa e, por fim, desapareceu. Só a voz persistiu, mais bela que nunca, enlouquecendo quem a ouvia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O cavalo de Tróia

Lovis Corinth - The Trojan horse (1924)

Nos dias de hoje tornou-se natural interpretar as narrativas míticas como uma reminiscência - por norma, distorcida - de acontecimentos reais. O efeito é rasurar a carga simbólica que a narrativa mítica traz consigo e, através dessa rasura, pôr de lado a natureza espiritual que o mito concentra em si e desencadeia naquele que o escuta e o perscruta. O cavalo de Tróia não foge à regra. As leituras ficcionais ou científicas anulam o ensinamento espiritual que o mito traz consigo. Muitas vezes, o espírito ilude-se a si mesmo e, julgando-se vencedor da aventura espiritual que elegeu, traz para si, como se fosse um prémio, o cavalo de Tróia que tornará patente a sua derrota e a ilusão em que persistia. 

domingo, 20 de novembro de 2016

Domingo de chuva

Émile Jourdan - Pluie à Pont-Aven (1900)

Os domingos são sempre dias onde se manifesta uma qualquer anormalidade. Por vezes, é a melancolia de uma tarde de sol que anuncia a desadequação à norma. Um domingo chuvoso traz consigo o mesmo poder simbólico. Não apenas retém os seres humanos nas suas casas, como é sentido como uma estranha injunção para que se recolham em si mesmos e, por um momento, esqueçam, nesse recolhimento, a inclinação para se dispersarem, movidos pelo fascínio que o mundo sobre eles exerce. Recolher-se em si, ainda que por instantes, é já um confronto consigo mesmo, um questionar sobre quem se é e sobre a vida que se tem. São perigosos os domingos de chuva.

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (590)

Jesús María Cormán - 5.8 Richter scale (2001)

590. poeiras sobre poeiras

poeiras sobre poeiras
erguem-se
ao som
de um violino
e tudo ondula
na onda sonora
de uma sequência
ordenada
ao ritmo
da escala de richter

(22/10/2016)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (305)

Benvenuto Benvenuti - Cipresse e colombe (194)

pombas e ciprestes
murmuram ao cair noite
vento e solidão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (589)

Jesús María Cormán - 2.3 Richter scale (2001)

589. treme a terra

                treme a terra
na leveza
escura do espaço
                oscila no ócio
da eternidade
                se grãos de areia
deslizam
pelos dedos
                vazios
e
                vacilantes de deus

(22/10/2016)

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (588)

Gerardo Rueda - Ballesta (1961)

588. o arquipélago do ardor

o arquipélago do ardor
emerge no mar
suspenso
na luz arenosa
da areia branca
e pérola
de um oceano côncavo
como um coração
a sangrar
de ilha em ilha

(21/10/2016)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (304)

Charles Guilloux - Paisagem fluvial (1893)

nas nuvens do céu
vêem-se as águas do rio
espelho e imagem

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Uma chávena de chá

Columbano Bordalo Pinheiro - Uma chávena de chá (1898)

Os dias eram preenchidos e alegres. Falávamos sobre isto e aquilo, fazíamos planos e cumpríamos os planos. A vida fora generosa connosco e permitia-nos ócios prolongados. Ele pouco tempo perdia com a administração dos bens. Todas as tarde tomávamos chá e deixávamo-nos enredar pelo desejo e por novos planos e novas aventuras. Foram anos de felicidade absoluta, como se fosse ainda possível um paraíso sobre a Terra. Os deuses, porém, são ciosos da sua exclusividade. Raramente estão dispostos a oferecer-nos um paraíso eterno. De tudo, resta este hábito, uma chávena de chá no silêncio da tarde.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

domingo, 6 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (587)

Vicente Rojo - Señales (1967)

587. súbitos sinais

súbitos sinais
soam
no silêncio sonoro
do sonho
no signo suave
da saudade
o símbolo suado
e sonâmbulo
da sombria solidão

(21/10/2016)

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A espera

Edward Hopper - Mañan en Cape Code (1950)

Chegava à janela, abria-a e ficava longas horas a olhar o horizonte. A princípio pensei que esperava alguém ou alguma coisa. A cena, porém, repetiu-se sem cessar. Não era, por certo, pessoa ou coisa que ela aguardava. Veio o Verão, depois o Outono e os anos foram passando. Havia nela uma fidelidade inabalável ao ritual, uma fé inextinguível. Há dias, a manhã despontou sob uma grande tempestade. Ela abriu a janela, debruçou-se sobre o parapeito. Um raio atingiu-a. Por momentos, reverberou e depois caiu. Havia no seu rosto sem vida um rasto de felicidade. Tinha chegado o que há muito esperava.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (586)

Liubov Popova - Komposition (1918)

586. sangue de vidro

sangue de vidro
escorre
no vitral verde
da melancolia
e abre-se
na noite de azeviche
para gotejar
no coágulo azul
a arder no azeite
puro
do céu de anil

(21/10/2016)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Romaria

Francisco Iturrino - Romaria (1905-09)

Com demasiada rapidez se relaciona a ideia de romaria a uma peregrinação popular, onde se combina a devoção e a festividade. Como a generalidade das expressões de matiz religioso, o termo romaria possui uma dimensão simbólica. À letra significa a peregrinação a Roma, ao centro da cristandade ocidental. Isto significa, na prática, uma viagem da periferia para o centro. Simbolicamente, porém, esta viagem não tem uma dimensão física nem geográfica. Ela é a peregrinação que cada um faz da exterioridade da sua vida social ao centro de si mesmo, à Roma, digamos assim, que cada um traz em si. E esta viagem pelo território interior nem tem de ser religiosa, no sentido corrente do termo, embora ela seja sempre uma re-ligação consigo mesmo. Cada um a fará conforme se sentir chamado ao caminho. Uns pela arte, outros pelo saber, outros pelo ofício, outros pela religião. Todos, de uma forma ou de outra, são convocados à romaria.