Pieter Brueghel, o Velho - Os caçadores na neve (1565)
Por que razão os rituais de caça, ainda hoje, desencadeiam entre os homens civilizados grandes paixões? A resposta mais fácil dir-nos-á que se trata de uma antiga herança proveniente dos tempos em que a caça permitia a subsistência da espécie. Há, contudo, algo mais do que essa memória proveniente da necessidade de alimento. A caça era mais do que um modo de vida, era um verdadeiro exercício espiritual, no qual o homem se descobria a si mesmo. Para além do desenvolvimento da precisão do braço e da acuidade da visão, havia um caminho a realizar, aquele que vai do corpo do caçador ao corpo da presa. Esta presa, porém, só na aparência era alguma coisa exterior ao caçador. Enquanto a presa fosse figurada como um objecto externo ao sujeito que caça, ela seria inatingível. A caça seria antes um exercício de fusão de predador e presa e, na prática, o caçador caçava-se a si mesmo projectado na presa. A vida espiritual do homem resulta de uma desmaterialização dos rituais de caça. É ainda e sempre a si mesmo que o homem persegue na vida do espírito, é a si que pretende caçar, é consigo que tem a nostalgia de se fundir. A paixão da caça é uma longínqua reminiscência dessa actividade do espírito, é o sintoma de um desejo esquecido e recalcado de se descobrir a si mesmo. Onde há uma paixão humana pode-se suspeitar quase sempre uma experiência espiritual fundamental que se perdeu, recalcou ou perverteu.