segunda-feira, 30 de junho de 2008

O lugar da sombra que cresce

Quase um mês de ausência, como se me tivesse esquecido de mim. Talvez a escrita ainda seja uma ilusão a que me agarro com medo da viagem. Não há viandante que não tema a viagem, mas a ausência da escrita não é indicador seguro de estar a caminho. Apenas o esquecimento e o desleixo cresceram, inundaram o jardim de ervas e a tudo se apegou um ar de abandono. Paro e volto ao lugar onde estava, não há um mês, mas àquele que era meu há muito: o lugar da sombra que cresce.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um mar agitado

Retorno à escrita. Estes dias de ausência foram também tempos de dispersão e esquecimento. Talvez o meu coração seja frágil e a vontade que me move fraca. Se procuro o caminho, por que motivo o ardor se esvai e tudo se prende aos pequenos nadas que os dias trazem consigo? Mais uma vez descubro o quanto não dependo de mim e que, se quero pôr mão na minha existência, tudo parece soçobrar num mar agitado e destituído de sentido.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O meu corpo

Uma tontura, uma espécie de volúpia a arrastar-me para o chão, um sentimento de estar desabrigado e impotente perante as forças que não controlo. Assim, de forma tão inopinada, um pequeno acontecimento físico não desencadeou apenas a preocupação com o que se está a passar, mostrou também os limites do homem. O próprio corpo é tão estranho que chega a parecer impossível dizer o meu corpo. Recolho-me em mim e não encontro casa alguma que seja a minha casa. Deixo-me e ir sabendo que nada sou e espero que Tu me ampares no caminho.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O mar da eternidade

O tempo passa tão rapidamente entre os trabalhos que a vida traz, que parece nada já existir para além do tempo que passa. Pesados grilhões são o tributo ao ardil do relógio, obscura volúpia que nos suga para o interior vazio que o habita. Agora que cheguei aqui, peço ao silêncio redentor a carícia da solidão. Fecho os olhos e penso na luz que me habita, nessa palavra que proferiu o meu nome e me trouxe ao mundo. Esqueço-me do tempo e calo o coração ao mergulhar no mar a que, à falta de melhor, chamo eternidade.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Nas mãos da Providência

Há dias em que o coração é um lago vazio e o cérebro um punhado de terra amassada. O melhor seria então encontrar um espaço de solidão e silêncio, um lugar de esvaziamento da alma, de abandono de si, de entrega à Providência. Mas dizer isto é já um equívoco, pois o que poderá um pobre homem fazer a não ser entregar-se nas mãos da Providência?

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A tentação

A tentação possui uma curiosa fenomenologia. Começa por ser um fruto da imaginação. Esta imagina um objecto desejável, confere-lhe uma tonalidade apetecível, instiga os instintos para esse fim, ao mesmo tempo que dissolve a vontade e torna a razão numa coisa nublada e incapaz de julgar. Por vezes, suspende mesmo a razão em nome do impulso que habita a faculdade de desejar. A imaginação é então uma rainha despótica de um reino sem fronteiras, soberana sempre desejosa de alargar os seus infinitos territórios. Mas será assim tão soberana essa imaginação? Quem desencadeia nela as imagens tentadoras?

domingo, 25 de maio de 2008

O cativeiro

O mundo é como a caverna de Platão. Dentro dele há apenas prisioneiros, mas prisioneiros de uma ilusão tenebrosa. Que ilusão será essa? É a ilusão que nos torna prisioneiros da imagem que de nós construímos. Somos então habitantes de uma dupla prisão. O mundo e o eu que se ata aos seus desejos e à avidez com que quer tomar para si o que não pertence a ninguém. Mas a libertação não significa uma fuga ao mundo, mas renúncia às suas próprias ilusões, à sua mesquinhez, à avidez que tudo coloniza. Liberto de si, aquele que peregrina nesta terra liberta-se também do mundo enquanto cativeiro.

sábado, 24 de maio de 2008

Do sentido da amizade

Passar o dia com pessoas amigas e desejar a sua presença sem que isso desvie o olhar da presença do inefável. Não será que o inefável está já nessa presença nimbada pela amizade ou pelo amor? Por vezes, procura-se a amizade como fuga a si e à sua realidade, como alienação, estranhamento e esquecimento. Mas a amizade é um dom que recebemos e a sua natureza simboliza uma outra amizade que funda todas as amizades humanas. Na amizade pensamos na igualdade dos amigos e no carácter gratuito dessa benquerença. Se transportamos essas ideias para a amizade com o absoluto, perceberemos de imediato essa estranha relação que absoluto e relativo podem entretecer. Mas o sal de todas as amizades só pode ser um: a lealdade. Talvez não exista nada mais perverso no mundo do que a deslealdade e a traição aos amigos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Não chamo por Ti

Escuto a tarde a tombar no reino da noite, oiço o rumor dos Teus passos se caminho esquecido de mim e por Ti me deixo conduzir. Abro o coração, o sangue flui tranquilo, e um silêncio de neve rodeia-me delicado, suave, mesmo se é pelo rude mundo que caminho. Não chamo por Ti, pois a minha voz não te alcançaria se já não estivesses nesse lugar de onde por ti chamaria.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um espaço vazio

Tornar-me um grão de areia, um nada, um espaço aberto e vazio, um espaço onde o que vem de fora e o que vem de dentro circulam sem restrições. Somos nós que afastamos Deus do mundo ao encerrarmos a débil fronteira que cada um é. Quanto mais cerrada for, maior a separação. Medito, por vezes, nas palavras heideggerianas sobre o afastamento de Deus. Mas Deus não se afastou. Está onde sempre esteve, no íntimo de cada um. O Homem é o sinal de Deus no mundo, mas se cada um dos homens fecha o sinal que é, um espectador distante pensará que Deus abandonou o mundo à sua sorte. A verdade, porém, é que o jardineiro esqueceu a sua missão e concentra agora tudo em si. O mundo que era para ele é agora um mundo que é seu, um mundo reduzido à mera propriedade e ao arbítrio do suposto proprietário. Mas se o proprietário se abandonar, se se abrir como espaço, Deus e o mundo reatarão de imediato a ligação e a sensação de derrelicção perderá o sentido.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

A negação de si

Negar-me a mim mesmo, negar as ilusões que sobre mim construo a cada hora que passa, negar o equívoco da minha importância. Mas como cumprir este programa, se todas as forças da natureza lutam com afinco para reforçar esse eu que devo negar? Não há nada mais humano que essa pequena palavra à qual atribuo todos os actos que pratico, os pensamentos que me ocorrem, as omissões que acontecem. Mais, a tarefa de negar-me ainda traz a prescrição de, nessa negação, não cair na abjecção pré-humana, no estado do animal incapaz de se identificar. Se penso, porém, no referente desse eu, se o começo a desmembrar pela análise, se lhe aplico o olho clínico, descubro que esse que diz eu é tão evanescente que o eu, essa impertinente partícula gramatical, parece ser-lhe a sua tábua de salvação, aquilo que na evanescência dá estabilidade. Negar-me a mim mesmo é perder a estabilidade. A negação de si implica então que se caminhe na instabilidade e na evanescência, que se mergulhe no fluxo da vida sem uma bóia. Onde, porém, irei buscar forças para essa caminhada?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Via Crucis

De onde vem e para onde vai o homo viator, o viandante que percorre os caminhos do mundo? Se escutarmos a voz do cristianismo, o viandante vai de Adão para Adão. O mundo surge assim como uma longa peregrinatio de si para si mesmo. Como Ulisses, o viandante sai da aprazível Ítaca para a guerra de Tróia. De certa maneira, Ulisses é o homem caído, um Adão helénico, sendo a queda simbolizada pela saída da pátria para a multiplicidade do mundo, da qual a guerra é a metáfora mais acabada. Mas, como o filho pródigo, também Ulisses tem necessidade de retornar ao seu estado adâmico original e empreende a viagem de retorno, uma viagem cheia de armadilhas e perigos. Ulisses é então o peregrino que se perde na terra estrangeira até encontrar, com o beneplácito dos deuses, a graça, dir-se-á em linguagem cristã, o paraíso perdido. O viandante é ao mesmo tempo Adão e Ulisses, mas o Adão que é expulso do paraíso só retorna a ele como Cristo, o crucificado. A peregrinatio do viandante é a via crucis que o leva do primeiro ao segundo Adão. Os caminhos que percorre só podem então ter dois sentidos: ou conduzem ao engano, à ilusão e à delapidação de si, ou apontam para o paraíso de onde Adão e Ulisses foram, por uma necessidade imperiosa, postos fora. Mas saberá o viandante destrinçar um e outro? Quantas vezes não é o caminho do engano, da ilusão e da delapidação de si uma autêntica via crucis? Mas sabê-lo-á aquele que a está a trilhar?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A morte da vontade

Luto contra a inércia e a indolência. Sento-me e obrigo-me a escrever e a trabalhar. O corpo, porém, é arrastado por um espírito em devaneio e por uma sombra nebulosa que parece cair sobre o cérebro e invadir os braços e o peito. Há um desfalecimento da vontade, mas este desfalecer é tão físico que quase o posso tocar. Talvez agora perceba por que motivo a preguiça é um pecado mortal. Nela habita a morte da vontade, de qualquer vontade, boa ou má. Mas, se olho com mais atenção, surpreende-me que ela seja considerada um pecado, como uma má escolha do meu livre-arbítrio. Eu não quero a preguiça, a indolência, a inércia da vontade. Apenas as sofro e sofro dolorosamente como se me atingissem no mais fundo do meu ser e me destruíssem, lentamente e com determinação. Por vezes, a quantidade de força para vencer a inércia é tão grande que me desgasto só na mobilização da vontade. Na base da preguiça existe uma desordem no ser, como se os elementos estivessem desestruturados e para conduzir a vontade à acção fosse necessário um árduo trabalho de reconstrução. Ao fim de tantos anos, sei que sozinho jamais conseguirei triunfar sobre este desarranjo estrutural. Mas será que sei abrir-me àquilo que ainda há de saudável no fundo do meu ser? Sim, pois apesar das contínuas derrotas de uma vontade frágil, nunca, até hoje, deixei de ter esperança de que as coisas acabariam por ser de outra forma, embora não saiba como será essa outra forma.

domingo, 18 de maio de 2008

O corpo desejado

O desejo de um corpo é muitas vezes mais do que um desejo corporal, de satisfação dos sentidos, se é que esta expressão descreve seja o que for na paixão erótica. A imaginação trabalha sobre o corpo desejado e, se esse desejo nunca foi consumado, ela abre uma clareira onde tudo se ilumina. Desejo aquela pessoa, pressinto o seu corpo a chegar junto do meu, a sua na minha boca. Mas não é aqui que está a verdade desse desejo. Há qualquer coisa inapreensível que me faz querer aquela pessoa e não outras, ou não muitas das outras que existem. É esse “qualquer coisa” que contém um segredo e é nesse segredo que se inscreve o meu desejo. É um facto que desejo aquele corpo, aqueles lábios, desejo ter a minha mão sobre aquela pele, desejo fundir-me naquela pessoa e amá-la, desejo a perdição do sexo e o fulgor de um beijo, desejo que aquele corpo me solicite e se torne solícito à minha solicitação. Mas nada disso ainda tem sentido, nada disso é relevante, nada disse me mostra a essência do meu desejo que se manifesta no desejar daquela pessoa. Pressinto que, para além do corpo desejado e da fusão desses corpos no jogo do amor, há um espírito que se reconhece, talvez por breves instantes, noutro espírito e que, mais do que os corpos, são eles, esses estranhos habitantes das nossas pessoas, que se desejam e que, mais de que todo o resto, desejam fundir-se. Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez. Mas para que isso se torne compreensível, há que pôr de lado aquilo que popularmente se entende por amor platónico.

sábado, 17 de maio de 2008

Da dor e da compaixão

Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A tensão do acontecer

Uma noite mal dormida e cheia de peripécias rocambolescas, um dia vago e vazio, como se o espírito, confundindo-se com o corpo, precisasse de descanso. A tensão do acontecer prende em si o pensamento e este apossa-se de todo o ser, impõe-lhe os seus devaneios e inconsequências. Um dia entre a agitação da possessão pela corrente de consciência e um cansaço de quem precisa de dormir e há muito não o faz. Respiro fundo e anseio pela hora em que posso descansar.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A matilha de cães

Se tudo em mim se silenciasse, o desejo, a vontade, o intelecto, a memória, talvez alguma coisa pudesse falar nesse silêncio. Mas como poderei calar a matilha de cães que me habita e não pára de ladrar? Se sinto um anseio pela quietude, logo os cães começam a rosnar e a latir e quanto mais os puxo para casa, mais forte se torna a sua voz e maior é o ímpeto com que me arrastam para a rua. Ladram agora em mim todos os cães que me habitam e no silêncio da tarde já não são eles que oiço, mas o lobo que ao uivar anuncia a noite que chega.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O ego que ri e aquele que olha

Pegar num projecto e pô-lo em funcionamento. O espírito enche-se de vida, a vontade inclina-se para a acção, mas um perigo espreita no horizonte: até que ponto um novo projecto não será mais uma afirmação do meu ego, uma ilusão sobre a minha capacidade criadora, uma forma de me tomar por um pequeno deus? Não é um projecto uma forma de propriedade? Como desprender-me dele mantendo-me ao mesmo tempo firme na sua elaboração e execução? Gostaria de poder dizer: vou agir como se ele fosse uma dádiva gratuita e vou apreciá-lo como uma forma de realização daqueles a quem ele se destina. Mas como poderei acreditar neste jogo? Sinto as forças vitais do meu ser voltado para ele e mesmo que diga que ele não me pertence, o meu pequeno ego ri-se e sente-se confortado na pequena glória que já antevê. Talvez a única solução seja olhar com ironia benevolente as pretensões que esse ego apresenta e fazer o que há a fazer. Mas há aqui um enigma: quem será esse que olha com ironia e benevolência o ego que busca a sua pequena glória?

terça-feira, 13 de maio de 2008

Da propriedade e do desprendimento

Com o passar dos anos a morte biológica torna-se cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, o temor que nos acomete nos anos da juventude, um temor secreto e inconfessado, vai-se dissipando como se a própria natureza fizesse ouvir no ser biológico a verdade dos seus imperativos. Aprender a morrer e a estar morto era o exercício que Platão, no Fédon, dizia constituir a natureza da filosofia. Mas esta aprendizagem da morte não é o desejo de pôr fim à vida, mas o exercício contínuo do desprendimento. Aprender a desprender-se daquilo que nos rodeia não é indiferença perante o mundo. O desprendimento parece antes ser uma via para a verdade do meu próprio ser. Só na verdade de mim é possível criar o espaço onde tudo o que é ganha um novo sentido. Este sentido nasce das coisas serem consideradas já não a partir da fractura da propriedade, do que é meu em oposição ao que é teu e ao que é do outro. Não é que os direitos de propriedade possam ou devam ser violados, mas devem ser remetidos para a esfera do animal que labora e, apesar desse animal ser humano, a propriedade não é menos, por isso, um instinto animal. Desprender-me da minha propriedade, mesmo que ela continue minha, é aprender a desprender-me da minha dimensão biológica ou, talvez seja o termo mais adequado, zoológica. Aprende-se a morrer morrendo para o que é próprio e aquilo que há de mais próprio no homem é o desejo de propriedade. O próprio escravo deseja-se proprietário de si. Talvez a experiência da liberdade só possa nascer desta aprendizagem do desprendimento.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Princípio de entropia

Tudo se desordena na minha vida, como se um princípio de entropia a regulasse e nada tivesse a força suficiente para a abrir ao essencial, aumentar a ordem e configurar de forma nítida a existência. Os dias passam, as horas, os minutos, os segundos, tudo passa inclemente, e nesta vertigem o real desagrega-se e o princípio que poderia suster-me parece abandonar-me. Se tento recolher-me para encontrar uma direcção, uma multidão de pequenas distracções vem até mim e os múltiplos mundos que podem existir no meu visitam-me e cindem-me ainda mais e mais. Cansado e sem norte, deixo-me atrair por qualquer coisa, desde que evite a realidade e as prescrições que a realidade tem para oferecer. Se ao menos pudesse silenciar o pensamento…

domingo, 11 de maio de 2008

Essa coisa obscura

Uma estranha volúpia arrasta-me para a inacção, deixa-me pregado ao nada, mergulha-me na mais escura preguiça. É um estranho prazer o de ficar a ver o tempo passar e sentir-me incapaz de inscrever seja o que for no curso do mundo. Qualquer coisa serve então como distracção e o espírito agarra-se a ela como ao maior dos bens. Um pequeno nada é suficiente para que o essencial se perca e eu me perca nessa nulidade. É como se de um ponto indistinto qualquer coisa apelasse em mim para a negligência. O mistério de tudo isto não está na tentação, pois essa reconheço-a com facilidade e identifico-a a operar em mim desde há muito, desde os bancos da escola onde aprendi as primeiras letras. O mistério está todo naquilo que me tenta e me arrasta, nessa coisa obscura que toma, de cada vez, novos disfarces e me conduz sempre e sempre à mais desesperante nulidade.

sábado, 10 de maio de 2008

A tempestade da dúvida

Há quem tenha uma fé substancial, uma fé capaz de mover montanhas, uma fé clara e distinta. Eu, porém, sinto-me atravessado pela tempestade da dúvida, da incerteza, da impossibilidade de me tornar num Atlas e carregar às minhas costas um mundo, tão pouco uma montanha. Se a fé é a crença e aceitação da revelação, a dúvida é a natureza do espírito que procura um caminho. Talvez a minha fé só possa nascer desse espírito que procura e a dúvida seja um sintoma da vida que cresce e se fortalece e na força que assim vai nascendo encontra a fidelidade ao que, na obscuridade, me chama. Talvez não haja verdadeira fé sem o tempero da dúvida. Quanto maior for uma, mais forte será a outra.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Da nostalgia e da saudade

Céu nublado, nuvens empurradas pelo vento, a chuva desabrida a cair para aquém da linha do horizonte. Assim como o céu mutável e inquieto, estou eu em contínua metamorfose. Agora sou leão, por vezes cordeiro, outras águia ou serpente, mas nunca criança. Perco-me nas mil transfigurações em que o espírito se ergue e cai e deixa de ver o rumo ou o horizonte. Quando a inocência se esvaiu, no lugar dela ficou, agora o sei, um desconsolo infinito e a sensação de que aquilo que se quebrou não poderá ser soldado. Daí nasce a nostalgia do que fui, mas a verdade é que nunca fui outra coisa para além do nada que sou. Talvez a nostalgia do passado seja apenas a saudade do futuro, a expectativa do vir a ser, talvez…

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A fonte que mata a sede

Se pretender encontrar-me a mim mesmo, onde poderei descobrir esse fundo que me permite reconhecer uma identidade? Cada um dos meus traços, físicos ou psicológicos, é evanescente, mutável, redutível a nada. Essa aniquilação parece, então, ser o centro da minha identidade e cada um dos traços com que me apresento a mim ou aos outros não passa de uma máscara que esconde a ausência substancial de uma realidade. É nesse nada que deverei mergulhar, pois esta imersão é a aceitação plena daquilo que sou: nada, ou para o dizer de um outro modo: sou pó e ao pó tornarei. O nada, porém, deixa-me livre e é nessa liberdade que posso abrir-me para aquilo que em mim é mais do que eu. Uma substância? Uma coisa? Um objecto? Não, é um nada de onde as substâncias, as coisas e os objectos tiram a sua substancialidade, a sua coisidade, a sua objectidade. Procurar esse nada é procurar a fonte que mata a sede.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Abrir o espaço

Cada um deverá encontrar o seu caminho, mesmo que esse caminho seja obscuro e incompreensível. Ir para além das aparências empíricas, escutar em silêncio o silêncio que fala, deixar que a palavra que cada um de nós é se torne no inaudível som que nos deve guiar, tudo isso só pode acontecer na liberdade mais estrita e na responsabilidade perante a própria existência. Poderemos salvar os outros? Se isso se entender como proselitismo, então é impossível salvar seja quem for. Mas se salvar for entendido como a abertura de espaço para que cada um encontro o seu caminho, poderemos não impedir que o outro encontre a sua via. Nos dias de hoje, não faz qualquer sentido falar com os homens modernos como se eles fossem destituídos de autonomia e não passassem de crianças a quem se lhe tem de meter medo para não caírem no maior dos perigos. Não era S. Paulo que dizia que onde abunda o pecado, abunda a graça?

terça-feira, 6 de maio de 2008

Do remorso e do arrependimento

Muitos dizem que não se arrependem de nada do que fizeram. Mas como poderei ser assim e proclamar ao mundo um orgulhoso não arrependimento? Há muitas coisas que não faria efectivamente e ao pensar nelas sinto uma vergonha íntima de as ter praticado. É a essa vergonha íntima a que se poderá chamar remorsos. O curioso, porém, é que essas coisas nunca como hoje chocaram tanto com a minha consciência. Olho para a minha vida e uma multidão de actos, pensamentos, palavras e omissões acusa-me e deixa-me perplexo perante a imagem que de mim faço. Começo a perceber que essas pequenas e grandes inclinações me levaram a um afastamento do absoluto, afastamento esse que fui justificando com razões, como se a razão existisse para justificar o mal que praticamos ou para legitimar a boa consciência. Mas saberei arrepender-me efectivamente? E o que significará esse arrependimento?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Margem segura

Um dia perdido em divagações e impotência. Em nada do que faço adiantei um milímetro que fosse, apenas as horas passaram e eu passei com elas, como se o meu destino fosse apenas passar. Desespero de mim e lanço um grito de angústia na noite que cai. Quem me escutará? Sinto no corpo uma lassidão tão grande e no espírito uma fria indiferença por tudo o que me compete fazer. A vontade frágil soçobra num mar de indolência e eu sinto-me a afundar e deixo-me ir como se dar aos braços e rumar para a margem segura fosse a mais difícil das tarefas que cabe ao homem no mundo.

domingo, 4 de maio de 2008

Sacro ofício

As obrigações sociais desgastam-nos, roubam-nos ao silêncio, ao recolhimento e dispersam o espírito por aquilo que o mundo impõe. Mas mesmo aí se revela qualquer coisa que não é o puro acontecer desprovido de sentido, mas um indicador do que se deve fazer. Uma obrigação é então uma forma de purificação do espírito e o seu cumprimento uma forma de sacrifício. Este não deve ser entendido como qualquer coisa negativa e dolorosa, mas como um ofício sagrado, um sacro ofício. E que sacro ofício é esse? É o da solicitude para com os outros e a negação dos desejos do nosso eu empírico. A obrigação mostra os limites que são os nossos e é um lugar de aprendizagem do caminho que nos cabe trilhar.

sábado, 3 de maio de 2008

O mistério da encarnação

A descida de Deus, do absoluto, na relatividade da carne e do tempo. Como poderia o olhar humano relativo e preso ao relativo perscrutar o fundo abissal do absoluto? Como poderia o corpo humano pressentir o eterno se tudo nele é temporal e passageiro? Mas a vinda do Cristo não é apenas a revelação do absoluto, do eterno e do divino ao homem. Ela é ainda uma outra coisa incompreensível e escandalosa tanto para a minha razão como para a minha sensibilidade: o tempo ainda participa da eternidade e a carne, aquela de que digo: isto é o meu corpo, é na sua corrupção tocada pela incorruptibilidade. Cristo é a proclamação de que há mais no tempo e na carne do que o mero passar e a funesta aniquilação: neles também habita o eterno, o absoluto e o divino.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Escrevo pelo silêncio

Estou seco. Cheguei a casa vindo do contacto com as gentes, e esta estadia fora do lugar onde o silêncio me pode acolher deixa-me tão gasto que a energia que resta apenas serve para me manter, distraído e em repouso, à tona da vida. O espírito fecha-se em si e o corpo pede-me o abandono que só a preguiça parece poder dar. Agarro-me a estas palavras para resistir. Escrevo-as, na debilidade que me atinge, para ficar um pouco mais forte e mais apto para me entregar ao silêncio e à escuta daquilo que pelo silêncio poderá vir. Escrevo na tarde para ouvir um rumor longínquo, escrevo como se orasse, escrevo para lutar contra a devassidão do cansaço e o brilho negro da morte. Escrevo para recuperar o silêncio que o mundo rouba, como se o mundo não pudesse ser outra coisa senão uma infinita cacofonia, uma torre de babel onde até os mais inanimados dos objectos tivessem uma língua e julgassem por bem fazê-la ouvir a quem passa. Escrevo para recuperar o silêncio das palavras, escrevo pelo silêncio da Tua palavra.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O florescer das buganvílias

Por vezes olho longamente as buganvílias floridas e, no esplendor que se ergue, descubro como são tão simples e sem mistério. Ali estão engavinhadas ao que as suporta e tudo se prepara, ano após ano, para o momento onde a beleza velada se desoculta perante o meu olhar estupefacto. Vazia é a vida, porém, se a cada ano que passa nada tem para mostrar e apenas deseja mais um ano para, no próximo, o desejo se perpetuar sem motivo, ou causa, ou mérito. Será apenas o meu destino olhar as buganvílias florescer e ser testemunha de uma vida plena e realizada onde todo o mistério se resume em florir à luz do espanto que me trespassa?

quarta-feira, 30 de abril de 2008

O guarda fronteiriço

O que resiste dentro de mim a um abandono ao que a Providência me enviar? Talvez um medo, o pavor do desconhecido, o terror de me perder. Se estou perdido, não o estou ainda suficientemente para não ter medo de me perder ainda mais numa noite da qual não diviso os contornos. Sim, é sempre possível dizer que a exterioridade impede o caminho para os decretos da Providência, mas haverá de facto uma cisão entre interior e exterior, entre aquilo que digo pertencer-me e o que está para além do círculo que julgo ser a minha pessoa? Enquanto houver um interior e um exterior, terei sempre o meu lugar assegurado. E que lugar será esse? O de guarda fronteiriço. Este administra o trânsito entre os dois lugares e toda a sua existência está fundada no serviço que assim presta. Mas se não houver fronteira, não haverá um dentro e um fora, nem guarda fronteiriço. Mas se eu não sou o guarda fronteiriço, o que serei? O que farei se a fronteira for abolida? Nela ainda encontro um lugar para descansar dos caminhos em que me perco; sem ela tudo se torna indiferenciado e não me resta mais do que me abandonar à sorte que me for enviada. A fronteira é a esperança do guarda fronteiriço perante o terror de se perder.

terça-feira, 29 de abril de 2008

O alimento da fé

De que se alimenta a fé? De uma exaltação do ânimo? Da convicção da razão? Do sentimento inabalável? Não, a fé que se alimente de tudo isso não é fé, apenas uma crença que, apesar de poder ser exaltada, não deixa de ser superficial. É esta fé que persegue o próximo e que, tendo o poder da espada na mão, não hesitará a fazer correr o sangue. O motor da fé não pode ser outra coisa senão a dúvida, a incerteza, a fragilidade da convicção. Só elas podem impelir o coração mais para diante, para uma experiência mais funda da palavra que nos fez ser. A fé alimenta-se assim da escuta. Ora aquele que se põe à escuta nem sempre ouvirá. Umas vezes porque está distraído, outras porque aquele que fala suspende a voz para deixar em suspenso o que escuta, desenhar-lhe um espaço maior para duvidar e, assim, com mais determinação fazer crescer a fé.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sou uma palavra dita

Sou uma palavra dita por Deus, diz Thomas Merton, depois acrescenta: Poderá Deus dizer uma palavra sem sentido? Não, Deus não diz palavras insignificantes, mas para muitos, como para mim, é obscura a palavra proferida. O que significa a palavra que eu sou e que me constitui? Se me debruço sobre a minha vida nada de sólido encontro e nada me permite desocultar o mistério dessa palavra. Há desejos em mim, sempre os houve, mas esses desejos nunca se apresentaram com força e coerência suficientes para moverem a minha vontade a realizá-los. Quem nunca desejou a glória do poder ou a do fazer? No entanto, esses pequenos desejos, pequenos porque não se constituíram como móbiles poderosos, nunca me moveram para uma acção determinada e consequente. Talvez não fossem a interpretação da palavra divina que me fez ser. Assim perdido, incapaz de compreender o significado profundo, me fui retirando de tudo o que é específico da realização do desejo e da ambição do homem. Resta-me apenas aquilo que a necessidade me impõe. Mas a palavra, aquela que me constitui no mais fundo de mim, continua, para a minha consciência, sem significado. Será a palavra de Deus que me fez vir à existência a palavra da minha insignificância, do meu sem sentido?

domingo, 27 de abril de 2008

Sem Pátria

O dia passou e eu passei com ele preso ao tempo que corre. Sentado, perdi-me num mar de inutilidades, pequenas servidões a que o hábito me verga, incapaz de um gesto libertador. O coração sonolento deixou-se arrastar e a vontade, frágil vontade, foi impotente para marcar um rumo. Assim caminha o exilado na terra que não conhece, umas vezes vai por aqui, mas logo muda de direcção, recua e procura outro caminho, para, passado instantes, se desgostar da nova senda e procurar outra e mais outra, como se não tivesse pátria para o acolher.

sábado, 26 de abril de 2008

Acção mundana

Estar no mundo e abrir-se àquilo que fora do mundo é mais do que toda a vida mundana. Os negócios que a vida quotidiana impõe são ao mesmo tempo duros obstáculos a quem espera encontrar mais do que o mero tempo que passa e oportunidades para, em cada acção que se efectua, nos abrirmos a qualquer coisa que nos transcende sem que seja de nós diferente. A ânsia, porém, com que nos damos e a avidez que nasce do desejo do êxito obscurecem a fonte de onde toda a acção tira a energia, o sentido e a graça da sua consumação.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

A porta fechada

Há uma indolência que me impede de abrir caminho na floresta. De onde nasce? Por vezes julgo que a sua origem está nas coisas exteriores e na sedução com se apresentam ao meu olhar. Depois reconsidero e é em mim, descubro, que ela está. As coisas exteriores e o seu fascínio só me obscurecem porque há algo obscuro em mim. No centro do meu ser, há uma porta que se fecha e a luz que por ela deveria entrar não entra. O peso da porta amolece, sim, é esta a palavra certa, a vontade e o corpo deixa-se cair num torpor sem significado e sem horizonte. Nesse torpor, vou perdendo a vida, prendendo-me a isto e àquilo, como se tudo isso me distraísse da porta fechada que me pesa dentro do coração.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Realizar a natureza

Ninguém se torna contemplativo. Ou se nasce contemplativo ou não. Ser contemplativo não é qualquer coisa que se possa adquirir como a riqueza ou a erudição. Ser contemplativo é uma vocação e uma forma de ser que não depende da nossa vontade. O mesmo se passa com o homem de acção. Só num mundo pleno de confusão se pode acreditar que podemos escolher e manipular a natureza do que somos. Aquilo que somos é uma dádiva e a realização da nossa natureza é a única forma de retribuição que permite mostrar gratidão pela graça de sermos o que somos. Mas a realização de si não é a realização dos nossos desejos, nem a concretização das ilusões que construímos sobre nós. A realização é o deixar vir à luz a natureza que gratuitamente nos foi dada.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Oração da manhã

Dizia o velho Hegel que a leitura dos matutinos é a oração da manhã do homem moderno. Dois séculos passaram sobre o dito e à imprensa veio juntar-se um sem fim de meios de comunicação. Mas a que Deus ora o homem moderno? Quando me levanto e abro a Internet e percorro os jornais e blogues o que descubro? Sim, pode-se sempre cultuar o espírito do tempo, mas não é bem ele que aparece em tudo o que é, para o homem moderno, motivo de oração matinal. O que aparece é a espuma. Não é a espuma, porém, uma forma de ocultação da água? O que se esconderá nessa espuma? A que deus oraremos nós homens ainda modernos? Não valerá mais voltar à ingenuidade do homem tradicional e invocar o Deus bíblico? Talvez já não nos seja consentida tanta ingenuidade e não tenhamos outros remédio do que o politeísmo que a comunicação nos traz de manhã, à tarde e à noite. Mas se Cristo aqui estivesse como e a quem oraria ele pela manhã? Mas não é Ele que cada um de nós é?

terça-feira, 22 de abril de 2008

A alienação da vida ordinária

A dificuldade maior reside em viver a vida ordinária sem que esta não seja a mais pura das alienações. Os fenómenos da vida corrente, as preocupações do trabalho, as exigências da vida partilhada com outra pessoa, a atenção ao destino dos filhos, as pequenas e grandes paixões que a vida foi semeando no caminho constituem-se como formas de desatenção e de perda. O fundamental não será construir uma máscara sólida e um centro racional de ataque às solicitações da existência, o fundamental será encontrar o caminho que permita estar atento ao essencial, mesmo quando se está comprometido na vida quotidiana. Mas o espírito é tão frágil que a cada momento sucumbe nas solicitações da vida, e de cada pequena coisa faz um obstáculo intransponível para o caminho para si mesmo. A sabedoria residiria em ser capaz de fazer da vida quotidiana a alavanca para a contemplação contínua do que é essencial. Mas quem será assim tão sábio?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O sexo

Sob o fascínio do sexo agitamo-nos como se ele pudesse trazer mais do que uma mera distracção e a fugaz compensação de alguns momentos de esquecimento de si. Entregue ao outro, nos braços da pessoa amada, aquele que vagueia neste mundo recebe um pequeno lenitivo para a dor de não saber o caminho. Mas o fragor com que corpos e espíritos se entregam, o desejo imaculado de fusão, a indistinção entre o eu e o mundo que a absorção no corpo amado permite, tudo isso quebra-se mal os corpos se apartam, mesmo que seja para retornarem ao ardor primeiro. Há na sexualidade humana uma promessa maior que as possibilidades do homem. É como se, por instantes, os amantes pudessem descortinar um outro mundo, mas mal os seus pés se põem a caminho já esse mundo desapareceu. Resta uma nostalgia agitada, um retorno infinito, uma condenação de Sísifo.

Caminho da salvação

O que entendo quando oiço palavras como caminho da salvação? Fico perplexo e nessa confusão que me tolhe o raciocínio deixo a mente deambular até esquecer esses sons magníficos. Mas eles lá ficam, prendem o espírito com as suas curvas bamboleantes, sempre prontos para saltar para cima do viandante. Aquele que está perdido aspira a salvar-se, mas o que quererá ele salvar? Salvar-se a si? Talvez. Mas não será este si a perdição de que se quer salvar? Não há caminho da salvação para quem deambula perdido pela vida, pois encontrar um rumo ainda é perder-se nessa mesma vida e ofuscar-se no trono que então conquistará. Aquele que anda perdido apenas terá de ser perder mais e mais, ir mais fundo para além de todas as perdições, para o sítio de todos os esquecimentos. Haverá coragem para tão dura jornada?

domingo, 20 de abril de 2008

Da resistência ao elogio

Um pequeno elogio e logo o nosso querido eu se engrandece e aspira a ser maior do que a mais elevada montanha. Como aprender a não levar a sério os elogios? Como aprender a ser delicado e grato com o elogiador e ao mesmo tempo não sentir uma ponta de orgulho no risível feito que nos é atribuído? Saber que não se é nada seria o melhor caminho, mas esse saber terá de ser mais fundo do que o saber da razão, deverá ser uma saber enraizado nos intestinos e nos ossos e no coração e no sangue. Mas o bem ou a beleza presente naquilo que nos é atribuído será propriedade nossa? Aquilo que nos é mais próprio será, porventura, o que é menos nosso.

No mar da distracção

Anoitece e o dia passou e passou como todos os dias passam por mim: desperdiçado e sem fim. Perco-me a cada instante naquilo que me distrai e toda a minha vida se passa num vago mar de distracções. Pudesse eu ainda permanecer em silêncio e deixar vir um súbito desejo de oração e entregar o meu coração a algo mais do que aquilo que, fora de mim, me chama e me exige uma obediência férrea. Olho para estas horas que passaram e vejo-me passar por elas como se todo o tempo me fosse dado e nada, na frágil vontade que me coube, é capaz de dobrar a atenção e fixá-la para além dos pequenos nadas, que lançam uma cortina de fumo onde me perco e perco a vida, talvez por ter perdido há muito a luz de Deus.

A máscara colada ao rosto

Se me procuro é ainda a mim que me procuro? Não serei eu o verdadeiro obstáculo que se abre no meu caminho. Se quero ser como os outros não é para que brilhe ainda mais alto do que todos esses outros? Há muito que descobri a imensa falácia que é o meu eu, a sua impotência mundana e os desejos, talvez débeis, de me engrandecer. Caminho dividido entre tudo aquilo que, para o espectáculo do mundo, desejei ser e nunca fui, mas também dividido entre esse eu que aspira à glória dos olhares dos outros e uma secreta palavra que sopra dentro de mim, vinda sei lá de onde, e que me diz da vacuidade dos meus desejos. Sem força para sustentar uma máscara que me contente, sem força para tudo abandonar e seguir a palavra que me chama e me fala do nada onde caminho, do nada de tudo o que desejei, do nada que sou nessa busca de uma máscara que me engrandeça perante os outros e, mais do que tudo isso, me eleve aos meus próprios olhos. Mas como arrancar a medíocre máscara que o tempo, tanto tempo já, colou sobre a pele do rosto? Cada vez que tento puxá-la, uma dor absurda toma conta de mim e os instintos saltam a gritar pela noite fora.

sábado, 19 de abril de 2008

Afastamento de Deus

Às vezes sonho com um retorno a essas horas da infância onde não havia entre mim e Deus uma tão grande distância. Tudo se harmonizava nesse jardim e os meus passos, que eu não sabia serem meus ou sequer passos, caminhavam pelo mundo fora, seguros da sua meta. Um dia, sem dar por isso, tudo se perdeu, ou tudo já estaria perdido e eu ainda não o sabia, soube-o então, soube-o primeiro sem o saber e, com o passar do tempo, fui sabendo cada vez com mais ferocidade. Foi no momento eu que quis ser como os outros, como se estes fossem de alguma maneira, ou soubessem sequer o que seriam se fossem alguma coisa. Nessa hora, Deus afastou-se de mim. Minto. Nessa hora, afastei-me de Deus e a cada dia que passava mais me afastava d’Ele, até Ele não ser mais do que recordação, depois ideia ou sombra, por fim o traço que escrevo no papel ou o suspiro que sai de entre os lábios. Agora não sei o caminho de casa. Quando me dizem que essa casa nunca existiu, assinto com a cabeça, mas o meu coração recusa-se a acreditar.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Confissão

Terá a minha alma a “mais vil de todas as necessidades”, a necessidade da confissão, a de “ser exterior”? Mas a confissão, seja qual for a modalidade que tome, não será antes o reconhecer de um desconhecimento? Só se confessa aquele que se desconhece e, nesse desconhecimento, decide procurar-se. Confessar-se é construir um texto. Melhor, a confissão é um mapa do desespero e um indício da ignorância. Se escrevo como se me confessasse não é para me exteriorizar. Escrevo para descobrir um sinal, talvez uma breve indicação do caminho para mim. Não, a confissão é apenas um espelho sombrio onde a alma errante e incógnita espera descobrir o caminho que do mundo leva a si.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A folha empurrada pelo vento

Poderei desfazer-me de mim, esquecer-me e ir estrada fora ao encontro do que vier? E o que pode vir desse lugar a que deram o nome, ouvi dizer, de nenhures? De lá é o nada que vem com as suas vestes brilhantes e acena-me com uma mão tão frágil que o meu coração quase se deixa tocar. O corpo, porém, impele-me na caminhada e ao ir vejo sempre e sempre coisas novas e com elas encho o ânimo e julgo então estar fora de perigo. Ao longe, fica nenhures, mas já nada em mim o lembra e aquela mão, que quase me tocava, nem recordação já chega a ser. Talvez não seja mais do que a folha que pelo Outono, empurrada pelo vento, se desprende e cai.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Perdido no caminho

A jornada já vai longa, mas o caminho ainda não se mostrou. Procuro aqui e ali, mas é sempre a decepção que vem. Por vezes, sigo sem saber para onde; outras, determino com exactidão a estrada. Mas perco-me sempre, como se uma luz me faltasse e o discernimento fosse tão frágil como uma caravela perdida no mar em procela. Sento-me e escrevo, escrevo sobre a falta de norte, escrevo cansado, escrevo iluminado pela chuva que lá fora se derrama sobre as avenidas. Há muito que me perdi no caminho que seria o meu, se o tivesse, ou se me fosse dado.