sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (344)

344. É UM MOMENTO SEVERO DE DESAMPARO E OCLUSÃO


É um momento severo de desamparo e oclusão.
As folhas deslizam secas na terra quente
e os gatos, a noite os semeia, ocultam-se na sombra
que escorrega de alguma nuvem perdida no céu.
Não é tempo de discórdia nem de harmonia,
apenas as horas passam exaustas e brancas,
transpirando na indecisão dos teus dedos.

Ouve-se um grito ou a fala apressada de quem
não tem idade e da vida tudo espera.
A cidade macera lentamente ao ritmo dos que passam,
vielas e recantos albergam olhares furtivos,
traços de luz suspensos na caliça das paredes.
Os dias estão semeados de terríveis hesitações,
símbolos puros à espera de precária decifração.

No pórticos das igrejas, pedintes e pombos traçam
roteiros e mapas, e toda a miséria ganha um rosto,
a cor designada que irrompe na lividez da alma.
Os dias que nos cabem estão cansados,
e aqueles que um dia amaram desmedidamente
sentam-se à espera de uma carta longínqua,
de um amor que o tempo vendeu ao esquecimento.

Uma paliçada de canas separa a tua da minha casa
e, quando o vento sopra trazido pelo norte,
escuto a música perdida na lira de Orfeu.
Um tremor floresce na esplêndida  fronteira traçada,
e irrompe na clareira onde um animal,
cru e selvagem, esboça uma dança luminosa
e, ambulante, se perde na sombra que cai no umbral.

4 comentários:

  1. Pobres e pombos parados à porta das igrejas, que imagem triste.

    Que cansaço esse que sobra destas sombras que cruzam os campos e as cidades.

    Quando um animal cru e selvagem assomou ao poema, ainda pensei que viesse aí algum sopro de vida mas, afinal, até esse se foi embora.

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  2. Mas não será o mundo que habitamos, a nossa civilização, um universos exausto? Não poderá essa exaustão falar através do poema? Mesmo o que há de mais dionisíaco no fundo de nós, ocidentais, não se perde na sombra ou no arremedo de uma verdadeira alegria?

    Mas sou mais um medium do que o proprietário do poema... Talvez o cansaço queira falar e nisso haja um sopro de vida.

    Boa-noite e um bom domingo

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  3. Que o sopro de vida resida dentro do cansaço é uma ideia mesmo desesperançada.

    reconheço que parece, de facto, que a civilização está a chegar a um 'dead end'.

    Mas quando se lêem os pensadores de todas as gerações para trás nota-se a mesma agonia, todos pensaramam que a coisava a bater no fundo, que se tinha dado cabo de tudo - tal como agora.

    Mas, se repararmos, ao lado desta agonia há sempre a vida a renascer, a natureza a seguir o seu próprio ritmo, e há a criação artística, e há sentimentos como o amor e há mil motivos para se pensar que o que há é uma necessidade permanente de estar atento e lutar e, ao mesmo tempo, dar valor à vida.

    Eu é nisso que acredito.

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  4. O conceito de crise é inerente à própria história do pensamento ocidental. Mas se olharmos para a história, os fins aconteceram mesmo. O fim da pólis grega, o fim do império romano, o fim da idade média. Nem sempre o novo foi mais interessante do que o antigo.

    No momento actual, a situação parece-me principalmente preocupante pelo envelhecimento da população, a transferência dos centros de decisão mundial para outros lados, a lenta degradação do mundo intelectual europeu. Mesmo a arte parece-me ter entrado num processo de irrelevância acentuada.

    A natureza, por certo, seguirá o seu rumo. Mas pode ser que esse rumo seja um que já não nos contemple.

    Bom domingo.

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