sábado, 28 de agosto de 2021

Haikai do Viandante (415)

Hiroshi Sugitomo: Aegean Sea, Pillon, 1990

 Sombras de silêncio
na névoa do horizonte.
O céu desce ao mar.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Biografias 23. A velha mulher

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999
Toda a minha vida está neste papel. Não, não é verdade. Toda a minha vida está nestas rugas, no cansaço que não me deixa erguer, no frio que me tolhe os gestos, nos fantasmas que, com o passar dos anos, substituíram as pessoas que encontrava. Vejo sombras, oiço murmúrios, sinto um frio que nasce no coração.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 89

Gustav Klimt, Schubert at the Piano, 1899
Ouve-se o desfilar das notas
trazidas pela leveza
com que os dedos
acariciam as teclas.

Um raio de sol trespassa
o vidro, fende
a penumbra
e abre o dia ao silvo da luz.

Uma música cintilante cresce
por dentro do silêncio
e floresce
nas pétalas de uma rosa.

Agosto de 2021

sábado, 21 de agosto de 2021

Micronarrativa (54) A espera

Júlio Pomar, Mulheres na Praia, 1950

Sentaram-se as três na areia da praia. Quem as visse pensaria que eram mulheres à espera dos maridos ocupados na faina do mar. Os traços rudes das faces, as roupas vindas de uma vida escassa, as costas viradas para o mar, como se dali pudesse vir não o bem, mas o pior dos males, tudo isso confirmaria a impressão do espectador. Como poderia qualquer mortal, sempre preso às aparências, descobrir a verdade? Quem as viu ao crepúsculo entrar nas águas não tem dúvidas. Eram sereias que esperavam a hora de regressar ao lar. Nunca mais foram vistas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Diálogos morais 62. Perfumes

Horst P. Horst, London, 1936
- Está a ver, ali ao fundo...
- Não, mas adoro o seu perfume.
- Adora?
- Imenso, fui eu quem lhe o ofereci.
- Está enganado.
- Como?
- Equivocado. Não me ofereceu o meu perfume.
- Não está a falar a sério. Não se atreveria a...
- Dispenso-lhe a insegurança. O que me ofereceu foi um perfume...
- Sim, isso mesmo, e adoro o seu aroma.
Adora o perfume que comprou, mas esse não é meu. O meu perfume recebi-o de outros.
- De quem?
- Não tem grande queda para distinguir os odores.  A química não é o seu forte.
- Diga-me quem lhe deu o seu perfume.
- É uma herança. Recebi-o nos genes, mas esse não o empolgou. 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O sal do silêncio (66)

Harry Callahan, Chicago, 1949

As janelas fechadas encerram a casa aos ruídos da rua, os dos carros que passam, das mulheres que conversam, dos cães que ladram, das máquinas que troam, dos homens que discutem. Assim fechada, a casa torna-se o lugar onde o silêncio salga a vida e a abre para o inesperado que aguarda a sua hora.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Biografias 22. O saltador de obstáculos

Rodney Smith, Don Jumping Over Hay Roll, Monkton, Maryland, 1999
Habituara-se a saltar obstáculos. Procurava-os onde eles pudessem existir. Ao encontrar algum, preparava o salto, corria e transpunha-o inexoravelmente. Havia, porém, um que ele evitava a todo custo, o maior dos obstáculo, ele próprio. Não sabe, o saltador, se a procura de obstáculos é uma etapa para enfrentar o obstáculo definitivo, se a fuga contínua de si mesmo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 88

Fernando de Azevedo, sem título, 1961
Entrar por dentro do silêncio
dele fazer casa, abrigo,
o fogo que arde
na manhã,
a luz na fímbria do corpo.

São silenciosas as palavras
dos deuses, vêm e vão,
procuram a morada
onde alguém
se possa acolher.

Agosto de 2021

sábado, 7 de agosto de 2021

Impressões 85. Rios

Dórdio Gomes, O rio Douro, 1935
Rios são espelhos onde os céus e terra se olham. Neles tudo se reflecte, a alegre exuberância da luz solar, a tristeza da neblina, a utilidade do casario, a sombra das árvores, o mistério da lua, a ameaça da tempestade. Um rio é um sinal onde a vida se mostra para melhor se ocultar.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Meditação Breve (164) Adoradores da História

Max Dupain, High Tide. Newport,1975
Há quem tenha por objectivo ficar na História, nem que seja a pequena história da terra onde nasceu. Soubessem esses o quão precário tudo é e quão culpados todos somos, em vez de desejarem ser alguma coisa e, assim, terem um nome, desejariam que nunca a História, essa deusa traiçoeira, se lembrasse deles e que o seu nome fosse esquecido. Quanto mais depressa, melhor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Impressões 84. Rasto sombrio

António Areal, Opus n.º 59, 1963

Um torvelinho de ervas secas vistas ao longe. Talvez uma imagem do aparelho neuronal com os seus jogos sinápticos. Uma tempestade no mar captada por uma velha máquina fotográfica. O turbilhão indiferenciado e caótico que liga o nada ao ser. Como tudo na realidade se confunde e, na mais diferenciada diferença, se encontra o idêntico, esse rasto sombrio da unidade primordial.