Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.