sábado, 29 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 99

Thomas Cole, Expulsión. Luna y luz de fuego, 1828
O fogo é um símbolo.
Arde por dentro
do dia,
deixa um rasto
de cinza
na porta do silêncio,
abre-se
como uma fresta
no pavor da noite.

Janeiro de 2022

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O sal do silêncio (73)

Wright Morris, Untitled, 1940s
A chama do candeeiro abre uma clareira à sua volta. Nela, penetra o tempo no seu cavalo mecânico, a vida engavinhada na morte, o silêncio ferido pelo bater surdo de cada hora.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Câmara discreta (2)

Autor desconhecido, Avenue des Champs Elysées, Paris c. 1870

Como era bela a vida, pensavam, ao percorrer com despreocupação a grande avenida, mesmo no centro do mundo. A geometria com que foi concebida, a disposição do arvoredo, a referência clássica inscrita no nome do lugar, tudo isso contribuía para uma sensação de leveza, para o esquecimento do que não se via, para o prazer de uma doce mobilidade tingida pela auréola divina. Quem ali estava, nesse lugar onde só os deuses têm acesso, não tinha dúvidas sobre quem era.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Haikai do Viandante (422)

Ivonne Sánchez Barea, Cienaga azul II, 1999

 Um pântano azul
cresce nos dedos da noite.
Céu de águas paradas.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Arqueologias do espírito 26

Émile-René Ménard, La Nube, 1896

Pelas nuvens chega-se a uma das mais arcaicas experiências de ocultação e de desocultação. Escondem o Sol e roubam aos homens a luz que os ilumina e permite a prevenção dos perigos. Ao serem levadas pelo vento, o retorno da luz torna-se uma epifania. Se escurecem e se combatem, os olhos ficam presos ao grande espectáculo, mas os corações temem a tempestade, a transformação em caos de uma ordem construída com dor e esforço. Se delas cai uma chuva plácida, a esperança desenha-se nos rostos, e das bocas solta-se uma acção de graças, como se ainda houvesse lugar para um amanhã.

domingo, 16 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 98

António Carneiro, Porto Manso, o Rio Douro em Ancede, 1927
Decomponho o dia
em seus frutos,
no que me chega
à mesa
e eleva a voz
em acção de graças.

Decomponho a noite
na promessa,
o ardente anúncio
da aurora
abrindo-me a mão
para o fruto de cada dia.

Janeiro de 2022

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Impressões 90. Neve

Burk Uzzle,  Winter Park, Central Park, NYC 1960

Eis a lívida claridade da neve, a que tudo transforma em mero esboço, como se a realidade perdesse a definição dos contornos e iniciasse a demorada viagem de diluição de si mesma. Perante a exuberância da brancura revestida com a glória do resplendor, a cidade não é mais que uma leve impressão, o vestígio de uma memória à beira de mergulhar no grande lago do esquecimento.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O sal do silêncio (72)

Jean Giletta, Oliviers et fruits, c. 1890
Em silêncio, a memória da oliveira reverbera em sua seiva. Ao florir, mergulhada no lento devir das auroras, abre o caminho para para a anunciação do fruto, que, emoldurado pelo verde, reina sobre a melancolia dos campos. Os homens esperam a hora em que maduro se entregue às núpcias sagradas, para que o seu sangue corra puro na boca que o espera.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Câmara discreta (1)

Thomas Miller, Hatton Hall, School for Young Ladies, Wellingborough, 1860s

Oferecem-se à câmara fotográfica numa coreografia meditada, num cenário onde tudo parecia perfeito. São actrizes por um instante. Depois, a vida voltará com o seu movimento e com todas as preocupações e temores, desejos e esperanças, tudo aquilo que ao pousarem esqueceram, para que o fotógrafo não lhes lesse o coração e a máquina não retivesse para a eternidade os segredos que nele se escondem.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Meditação Breve (173) O insulto

Vespeira, Parque dos Insultos, 1949
Há em todo o insulto uma desfiguração. Não do insultado, mesmo que se vise através da injúria redescrever-lhe a figura com contornos ominosos, mas do insultante. A acção de atingir o outro recai sobre si mesmo, dilui a própria figura, abre uma fenda no seu ser pessoa, por onde entra o vitríolo que a haverá de corroer. Nunca um insulto é desprovido de consequências.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 97

Caspar David Friedrich, Winter Landscape with Church, 1811
O fumo do Inverno
desce
sobre o jardim.

Os cedros reverberam
na memória
dos dias luminosos
da infância.

Tudo se suspende
na viagem
entre a invernia
que me traz
da casa do passado
ao porto do presente.

Janeiro de 2022 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Impressões 89. Tempo

Alex Teuscher, Time neverending, 2010
A linha do tempo. Ao ouvir a expressão, logo se imagina uma seta disparada do passado, voando em direcção ao futuro, uma linha recta interminável. O tempo humano, porém, pouco tem a ver com essa experiência. Avança, mas também parece voltar a um ponto anterior, num esforço de recapitulação. O eterno retorno do mesmo, porém, não deixa de ser uma ilusão. O melhor símbolo para a impressão que o tempo produz no espírito dos homens será a espiral. Conjuga progresso e retorno e, se olhada com atenção, manifesta o carácter abissal do tempo.