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quarta-feira, 28 de março de 2018

Meditação breve (75) Rebelião

Arnold Genthe, Isadorable, 1921

Ter corpo é estar sujeito à gravidade. Por isso, a dança é uma rebelião. Não é o corpo em movimento que faz a sua essência. Esta não é outra coisa senão a revolta contra a nossa condição, contra o facto de estarmos submetidos, por inexoráveis leis, à tirania da gravidade. Por um instante, ao dançar, o corpo eleva-se e, nessa eternidade que dura um momento, aquele que dança é livre, como num sonho.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Dançar numa casa de loucos

George Wesley Bellows - Dance in a Madhouse (1917)

Dançar numa casa de loucos poderia ser uma metáfora sobre os transtornos - e eles são sem fim - da vida no mundo. No verdade, porém, a metáfora ilumina a vida espiritual. Num mundo caótico e irrazoável, a vida do espírito é como uma dança, na qual os que dançam se entregam, sem premeditação ou projecto, ao ritmo da música num espaço tornado caótico pela presença de todos os que dançam.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Suspender a gravidade

Saul Steinberg - Gravity Reversed (1961)

Na dança ou no desporto desenha-se uma das grandes ambições da humanidade, a libertação da gravidade. O desejo de se elevar acima da terra é, porém, o símbolo de um outro apelo, o apelo à libertação da necessidade. A terra e a gravidade simbolizam tudo o que nos prende irrevogavelmente à condição humana. Suspender a gravidade é o programa de toda a vida espiritual. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Danças e narrativas

Juan Genovés Candel - Narracíon (1982)

O meu avô estava já paralisado. Um dia pediram-lhe para contar uma história que ele tivesse vivido com o seu mestre. Então ele contou como esse homem santo que era o seu mestre tinha o costume de saltar e dançar quando rezava. E ao contar isto o meu avô levantou-se, e o relato envolveu-o de tal maneira que ele começou a saltar e a dançar para mostrar como o seu mestre fazia. Desde esse instante ficou curado. (Martin Buber, apud José Tolentino Mendonça, Atual do Expresso, 27/09/2013).

Esta singular história que Martin Buber conta do seu avô não serve apenas para sublinhar a extrema importância do acto de contar e ouvir histórias na economia da vida humana. Ela sublinha a natureza profundamente física - corporal - daquilo que se convencionou chamar a experiência espiritual do homem. Saltar e dançar, essas formas de suspensão momentânea da gravidade, implicam uma libertação do corpo daquilo que o prende (literal e metaforicamente à terra) e a sua concentração no acto de orar. Ao saltar e dançar todo o ser se funde numa unicidade e é essa unicidade que opera a relação com o sobre-humano. Tudo isto, porém, está enquadrado num processo de transmissão narrativo. A narrativa tem o poder de desencadear as operações mais fundas e secretas que se escondem no interior do ser humano, aquelas que o podem levar à dança e, como no caso do avô de Buber, à cura.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Dança báquica

André Louis Derain - Bacchic Dance (1906)

A terra dança. O espírito da terra ergue-se, ganha figura, multiplica-se em corpos, e os corpos dançam e dançam, como se aspirassem a não ser corpos, mas apenas a terra pura que, inebriada e sem destino, espera que o céu desça sobre ela e a tome para sempre nos seus braços.

domingo, 25 de agosto de 2013

O rito da dança

Marc Chagall - Dance (1962-63)

Na dança, aquilo que retém olhar não é tanto a luta contra as leis da natureza, a suspensão da gravidade, mas a sua natureza ritual. Nela realiza-se um rito nupcial, uma antecipação da união dos corpos e fusão dos espíritos. Torna-se a dança, a cada momento, um símbolo arcaico daquilo que, no mistério de Eros, surge como injunção à fusão dos corpos e à dissolução de dois seres num único. A dança é a antecâmara de um mistério que está muito para além dos limites da razão.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O corpo que dança

Henri Matisse - A dança (1909-10)

Talvez tenha sido Paul Ricoeur que tenha dito que a dança é uma luta contra a gravidade. Ao dançar, o corpo fluidifica-se, abole alguns limites, redefine as fronteiras do possível. Quanto mais exigente tecnicamente for um estilo de dança maior a ambição que nele se esconde. Que ambiciona um corpo ao dançar? Tornar-se um corpo mais  eficiente e com maior capacidade performativa? Tornar-se numa aparência arrebatadora para o espectador? Tornar-se fonte inesgotável de um prazer subjectivo? Tudo isso pode ser verdade, mas é secundário. Ricoeur, se não me falha a memória, tem toda a razão, o corpo pretende suspender o efeito da gravidade. O que significa, porém, esse desejo? Significa simplesmente que o corpo aspira a não ser corpo. A gravidade faz parte da corporalidade. A nossa experiência do corpo é concomitante ao nosso sentimento de subjugação à gravidade. Quando o corpo dança, quando responde ao anseio de suspender a gravidade, ele responde ao seu mais secreto desígnio. Ele pretende tornar-se puro espírito. Quando os corpos dançam é o espírito que neles se esconde que se manifesta. A dança é sempre uma hierofania.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dançar na tarde marítima

Nadir Afonso - Deusas do Vento

Abrir-se ao vento, abandonar o corpo no espaço, perder o norte, desconhecer tudo o que se sabe. Assim começa a viagem. Uma pergunta, a súbita estranheza de um mundo sem sentido, o chamamento daquilo que vem de longe e se aproxima trazido pela a aragem. A senda é uma dança com os elementos, com a terra de onde os pés se elevam, com a água que toca o corpo e o salva, com o ar que nos eleva ao fogo. 

No éter eterno, quem espera por nós, quem espera por aquele que dança? O corpo é uma labareda. Ergue-se sobre a terra, dança no céu com o fogo que se aproxima, que o chama, o rapta, e rouba-lhe cada palavra, pois o silêncio é a casa onde o fogo ilumina aquele que, sob o vento, dança na tarde marítima, na pureza azul de todos os mares batidos pela primavera, pelo verde onde um moinho nasce no centro da memória perdida.

sábado, 5 de maio de 2012

Da arte da dança

Giorgio Morandi - Natura Morta (1918)

A tensão entre corpo e espírito é o cerne da nossa natureza viva. O desprezo pelo corpo, a sua negação, o ódio ao que ele traz consigo são formas de morte, mas de uma morte onde o próprio espírito morre. Também a eliminação do espírito, dos seus anseios e desejos, é uma forma de solidificar o corpo, torná-lo numa verdadeira natureza morta. Dividir o ser em duas partes é já uma decisão arbitrária, mas à qual não podemos fugir, pois foi assim que o mundo e o estar nele nos foi ensinado. O importante é aprender o jogo que as partes devem uma à outra e jogá-lo. A finalidade desse jogo não é a vitória de uma parte sobre a outra, mas abolir a fronteira onde a divisão se dá. Abolir a fronteira não significa uma decisão jurídica proferida por uma instância independente ou um tratado onde as partes, mantendo-se enquanto partes separadas e distintas, deixam o viandante transitar de um território para o outro sem necessidade de passaporte e paragem na alfândega. Abolir a fronteira significa que já não há juiz que sentencie nem partes que assinem tratados, tão pouco um viandante que as percorra. Significa apenas que corpo e espírito se fundiram e nessa fusão são alimentados pela tensão. Não já a tensão inicial entre corpo e  espírito, mas a tensão que resulta agora da tendência para a separação e o desejo de aprofundar a fusão. A tensão inicial deu lugar ao jogo, e este à dança. O ser dança e não é possível dançar sem que uma tensão percorra cada célula daquele que dança, que a alimente e a impulsione no seu movimento, na sua luta contra a gravidade.