quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (352)

Antonio Tápies - Noche Desprendida (1952)

352. A TRÉMULA VERDADE BALBUCIADA PELA TUA BOCA

A trémula verdade balbuciada pela tua boca,
pequeno farrapo de orvalho escondido
numa manhã fresca e sem sol,
dorme agora na negra caverna do meu corpo,
pobre matéria amontoada pela vida,
carne lacerada e aberta ao voo do milhafre,
um cântico sem luz nem melodia.

Tudo fora um lento exercício de mágoa,
a entrega inopinada no leito voraz,
as paredes brancas silenciadas na tarde,
os seios tremendo sob o peso do lençol,
os lábios entreabertos à espera de Deus.

Deixara de haver um futuro para consumar.
Ele chegara no regaço da tarde,
e era vento soprado do norte, uma canção
triste que subia pelas águas da montanha
e desaguava na sede das searas no estio.

Oiço o breve troar do sangue no teu coração
e sento-me à janela para ver o vento passar.
São apenas imagens, pequenas sequências,
o filme gasto de um quarto à beira-mar.
Hoje, estou eternamente de quarentena,
o mal que veio sobre o mundo infestou-me,
e se te vejo ao longe ou oiço nas trevas, sei
que não há remédio que nos livre da escuridão.

4 comentários:

  1. Mais um poema de grande beleza.

    Eu que não sou dada a rezar, nem o sei fazer (pelo menos segundo os preceitos; se calha assistir a uma missa não acerto com uma deixa, não sei nada, nem dito nem cantado, nada, nem percebo quando devo estar sentada, de pé ou de joelhos), leio um poema assim e imagino-o lido como uma reza, um lamento que é quase uma prece - uma prece desesperançada.

    Muito belo este poema.

    ResponderEliminar
  2. Muito obrigado, UJM. Talvez a poesia seja ainda uma força de oração. Melhor, talvez a poesia ainda seja a única forma de oração possível.

    ResponderEliminar
  3. Sim, a poesia é o sítio das coisas perfeitas. Na poesia (pelo menos na sua, na de Sophia, na de Herberto Helder e na de outros bons poetas) nada é exagerado, tudo é puro, genuíno, tudo respira de uma forma simples e bela.

    É um local onde sabe bem estar, quase como um refúgio.

    Agora outra coisa: a sua imagem é a do grito, um grito que parece medo ou susto. Não sei se conhece mas, pelo sim, pelo não, aqui lhe deixo:

    http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=55492&op=all

    (Gosto de conhecer estas coisas, espero que goste também)

    ResponderEliminar
  4. Muito obrigado por me colocar em tão boa companhia.

    Não, não conhecia a revista, nem essas aproximações entre as imagens internas do cérebro e as obras de arte, na verdade imagens externas projectadas a partir do mesmo cérebro.

    Obrigado.

    ResponderEliminar