Julio Gómez Biedma - Un agujero negro
361. SOBRE AS FALÉSIA DO SENTIMENTO, A NOITE ABRE-SE
Sobre as
falésias do sentimento, a noite abre-se
para te
acolher num jardim moldado na terra,
o lento
trabalho do secreto formigueiro
sob o abençoado
cântico da cigarra.
Para que
servem as alegorias nesta hora?
Ouvem-se os
pássaros na rocha negra,
e no areal
rasgado pelas águas espalham-se
algas,
conchas, restos de plástico e madeiras
carcomidas,
o ardil antigo do comércio.
Todos se
acercam, ociosos, do seu destino,
e vão
triunfantes sobre ervas e caminhos,
esquecidos
de quem no fim os espera para entoar
a canção, a
vitória desolada sobre a vida.
Leio o livro
do Êxodo e adormeço tranquilo,
as portas
fecham-se e os teus olhos cobrem-me
com a seda
amena que te nasce no coração.
Sonho
inquieto com a volúpia estendida no umbral
e oiço o
pulsar brando da melancolia da manhã,
a voz tecida
no uivo que ressoa em cada palavra.
Uma lacuna
de sangue abre-se na memória,
poço
negro e frio, ventoso e sem fundo.
Grito, mas o
eco não me devolve a voz
e uma
vertigem traça-me a fogo o ventre,
cresce nos
ombros e derrama-se no cérebro.
Por ali,
entra a serra que o distante passado me dera
e a infância
vazia de tudo o que nela crescera,
o jardim que
as mãos desenhavam num caderno
sem folhas
nem capas, apenas uma breve memória,
a falésia
escarpada na volúpia da aurora.
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