sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (361)

Julio Gómez Biedma - Un agujero negro

361. SOBRE AS FALÉSIA DO SENTIMENTO, A NOITE ABRE-SE

Sobre as falésias do sentimento, a noite abre-se
para te acolher num jardim moldado na terra,
o lento trabalho do secreto formigueiro
sob o abençoado cântico da cigarra.
Para que servem as alegorias nesta hora?
Ouvem-se os pássaros na rocha negra,
e no areal rasgado pelas águas espalham-se
algas, conchas, restos de plástico e madeiras
carcomidas, o ardil antigo do comércio.

Todos se acercam, ociosos, do seu destino,
e vão triunfantes sobre ervas e caminhos,
esquecidos de quem no fim os espera para entoar
a canção, a vitória desolada sobre a vida.
Leio o livro do Êxodo e adormeço tranquilo,
as portas fecham-se e os teus olhos cobrem-me
com a seda amena que te nasce no coração.
Sonho inquieto com a volúpia estendida no umbral
e oiço o pulsar brando da melancolia da manhã,
a voz tecida no uivo que ressoa em cada palavra.

Uma lacuna de sangue abre-se na memória,
poço negro e frio, ventoso e sem fundo.
Grito, mas o eco não me devolve a voz
e uma vertigem traça-me a fogo o ventre,
cresce nos ombros e derrama-se no cérebro.
Por ali, entra a serra que o distante passado me dera
e a infância vazia de tudo o que nela crescera,
o jardim que as mãos desenhavam num caderno
sem folhas nem capas, apenas uma breve memória,
a falésia escarpada na volúpia da aurora.

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