Antonio Tápies - Noche Desprendida (1952)
352. A TRÉMULA VERDADE BALBUCIADA PELA TUA BOCA
A trémula
verdade balbuciada pela tua boca,
pequeno
farrapo de orvalho escondido
numa manhã
fresca e sem sol,
dorme agora
na negra caverna do meu corpo,
pobre
matéria amontoada pela vida,
carne
lacerada e aberta ao voo do milhafre,
um cântico
sem luz nem melodia.
Tudo fora um
lento exercício de mágoa,
a entrega
inopinada no leito voraz,
as paredes
brancas silenciadas na tarde,
os seios
tremendo sob o peso do lençol,
os lábios
entreabertos à espera de Deus.
Deixara de
haver um futuro para consumar.
Ele chegara no
regaço da tarde,
e era vento
soprado do norte, uma canção
triste que
subia pelas águas da montanha
e desaguava na
sede das searas no estio.
Oiço o breve
troar do sangue no teu coração
e sento-me à
janela para ver o vento passar.
São apenas
imagens, pequenas sequências,
o filme
gasto de um quarto à beira-mar.
Hoje, estou
eternamente de quarentena,
o mal que
veio sobre o mundo infestou-me,
e se te vejo
ao longe ou oiço nas trevas, sei
que não há
remédio que nos livre da escuridão.
Mais um poema de grande beleza.
ResponderEliminarEu que não sou dada a rezar, nem o sei fazer (pelo menos segundo os preceitos; se calha assistir a uma missa não acerto com uma deixa, não sei nada, nem dito nem cantado, nada, nem percebo quando devo estar sentada, de pé ou de joelhos), leio um poema assim e imagino-o lido como uma reza, um lamento que é quase uma prece - uma prece desesperançada.
Muito belo este poema.
Muito obrigado, UJM. Talvez a poesia seja ainda uma força de oração. Melhor, talvez a poesia ainda seja a única forma de oração possível.
ResponderEliminarSim, a poesia é o sítio das coisas perfeitas. Na poesia (pelo menos na sua, na de Sophia, na de Herberto Helder e na de outros bons poetas) nada é exagerado, tudo é puro, genuíno, tudo respira de uma forma simples e bela.
ResponderEliminarÉ um local onde sabe bem estar, quase como um refúgio.
Agora outra coisa: a sua imagem é a do grito, um grito que parece medo ou susto. Não sei se conhece mas, pelo sim, pelo não, aqui lhe deixo:
http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=55492&op=all
(Gosto de conhecer estas coisas, espero que goste também)
Muito obrigado por me colocar em tão boa companhia.
ResponderEliminarNão, não conhecia a revista, nem essas aproximações entre as imagens internas do cérebro e as obras de arte, na verdade imagens externas projectadas a partir do mesmo cérebro.
Obrigado.