quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (353)

Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)

353. TRAGO O POEMA PARA O MEIO DA RUA

Trago o poema para o meio da rua,
traço com ele um lastro de sangue e vinagre,
visto-o de impurezas que a vida me dá
e deixo-o, feliz, rebolar-se na lama,
rastejar sobre pedras e cardos,
para se levantar, um uivo na madrugada.

Não pensem que traz um programa, um mundo,
a licença que vos liberta de ir à vida.
Não pensem que vos dispensa do suor
ou que derrama lágrimas nos vossos olhos.
Não pensem que é a voz de Deus ou do profeta,
a súbita anunciação do paraíso reencontrado.

São apenas palavras sujas roladas na terra,
atiradas à cabeça dos incautos,
uma onda de vento azul nascida no oceano,
ínfimas estrelas cadentes que riscam
a noite, o dia, o ritmo das mãos
perdidas num corpo sedento aberto ao luar.

O poema que desce pela rua é uma víscera,
as sílabas decompostas e a gramática em putrefacção,
uma recusa de água pura e de amor sublime,
a jangada vazia perdida na vastidão do mar.
Por vezes, o poema canta na fímbria da tarde,
uma promessa, uma alegria, a dor da solidão.

Palavras, quimeras na pérgula do quintal,
balas de borracha e gás lacrimogéneo lançados
sobre uma multidão de ervas e cactos,
testamentos antigos que prescrevem
o eterno dever de amar a traição,
o exercício de morrer às mãos de quem nos ama.

O poema passeia solitário na avenida vazia,
cobre-se na sombra das velhas árvores
tracejadas pelo infalível micróbio da morte.
Cresce depois sob a luz de um sol sem clemência,
eleva-se, torna-se no céu a mais negra nuvem
e cai como pedra e fogo sobre o chão da rua.

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