Oskar Kokoschka - Cavaleiro Errante (1915)
Naquele tempo, Jesus viu um
cobrador de impostos, chamado Levi, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe:
«Segue-me.» E ele, deixando tudo, levantou-se e seguiu-o. Levi ofereceu-lhe, em
sua casa, um grande banquete; e encontravam-se com eles, à mesa, grande número
de cobradores de impostos e de outras pessoas. Os fariseus e os doutores da Lei
murmuravam, dizendo aos discípulos: «Porque comeis e bebeis com os cobradores
de impostos e com os pecadores?» Jesus tomou a palavra e disse-lhes: «Não são
os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os
justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores.» (Lucas 5,27-32) [Comentário de Rafael
Arnaiz Baron aqui]
A leitura do texto de Lucas deixa pairar uma suspeita sobre aqueles
que se apresentam como justos. O primeiro sinal dessa suspeita está com quem
Cristo e os seus discípulos fazem comunidade. Os murmuradores sentiam-se
excluídos e viam incluídos nela aqueles a quem desprezavam. O segundo sinal
está nas próprias palavras de Cristo que diz que vem chamar não os justos, mas os
pecadores.
Fariseus e doutores da lei representam uma piedade formal, de onde a
tensão da vida parece estar excluída. Eles são justos perante a lei. Mas se a
lei for apenas um escudo em que se protegem para não se confrontarem com a
própria existência? A vida exige mais que a mera conformação com a lei, exige a
turbulência que é suscitada pelo campo experiencial que é colocado à disposição
do homem pelo simples facto de estar vivo, de ter sido posto aí.
Se Cristo não parece interessado nos justos, por quem se interesse ele?
Por quem veio Ele chamar? A tradução portuguesa, baseada na latina, perde
aquilo que está em jogo. De tão utilizada, a palavra pecador perdeu
praticamente o sentido original das expressões aramaica e grega. Nestas
línguas, as expressões usadas remetem para a ideia de errar ou não atingir um
alvo. Antes de uma conotação moral, estamos perante uma descrição existencial.
O Cristo veio falar para aqueles que falham na vida o alvo proposto. E é ao falhar
esse alvo existencial que se perdem. Neste momento, errar ganha a sua dimensão real,
a dimensão da errância, da vagabundagem e do nomadismo existenciais. Significa
uma perda de oriente e, em última análise, um perda de si mesmo.
Mas que sentido terá esse arrependimento a que os que falham o alvo,
os errantes, são convocados? O que está em causa não é, em primeiro lugar, uma
questão moral, mas, fundamentalmente, uma questão existencial. Arrependimento
remete para a metanóia, para a mudança da mente, do espírito. Significa
elevar-se a um outro ponto de vista, a partir do qual se possa não falhar o
alvo, se possa pôr fim à errância do espírito, abri-lo ao alvo que ele próprio
é. Não basta a conformação à justiça configurada na lei. É preciso mergulhar no
trágico da existência e nele encontrar o alvo que a vida propõe.
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