Albert Gleizes - A Transfiguração (1943)
Naquele tempo, Jesus tomou
consigo Pedro, João e Tiago, Jesus subiu ao monte para orar. Enquanto orava, o
aspecto do seu rosto modificou-se, e as suas vestes tornaram-se de uma brancura
fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, os quais,
aparecendo rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em
Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam a cair de sono; mas, despertando,
viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. Quando eles iam
separar-se de Jesus, Pedro disse-lhe: «Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos
três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.» Não sabia o que
estava a dizer. Enquanto dizia isto, surgiu uma nuvem que os cobriu e, quando
entraram na nuvem, ficaram atemorizados. E da nuvem veio uma voz que disse:
«Este é o meu Filho predilecto. Escutai-o.» Quando a voz se fez ouvir, Jesus
ficou só. Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, nada contaram a
ninguém do que tinham visto. (Lucas
9,28b-36) [Comentário de Cirilo de Alexandria aqui]
O silêncio que Pedro, João e Tiago guardaram após os eventos do Monte
Tabor é o sinal da profunda perplexidade perante um acontecimento que está para
lá daquilo que consideramos a experiência possível. Os limites da experiência
possível, aqueles que são ditados pelo curso normal da natureza e condensados
no que chamamos, hoje em dia, leis da natureza, tinham sido suspensos. Na
abertura que se deu no tecido do real, uma outra realidade – na verdade uma hiper-realidade
ou uma sobrerrealidade – manifestou-se. Digno de nota não é apenas esse ruptura
na ordem da realidade. Também o facto de aqueles três homens, naquele momento,
terem tido, apesar da sua incompreensão, acesso ao fenómeno, como se também
neles alguma coisa de abrisse, merece atenção.
A ruptura da tecelagem do mundo está claramente afirmada pela tradição
ao falar em transfiguração do Cristo. A mudança de figura manifesta-se numa reconfiguração
dada pela metamorfose do rosto, pela fulguração das vestes, pelo diálogo com
aqueles que há muito tinham partido. A transfiguração é momento de espanto e símbolo de continuidade, sinal de uma
tradição que, tendo origem em Abraão, tem pontos cruciais em Moisés e Elias e
se cumpre em Cristo. A conjugação da transfiguração e da tradição deixam
suspeitar uma dupla relação com a temporalidade. Por um lado, a presença de
Moisés e de Elias inscreve Cristo numa História, na dinâmica do acontecer no
mundo, numa perspectiva horizontal. Por outro, o encontro entre essas três figuras, tal como é narrado,
remete para uma perspectiva vertical onde o tempo aparece abolido e
transcendido.
Pedro, com a sua tentativa de inscrever o acontecimento na ordem da
realidade, no desejo de o apreender e prender aos limites da experiência
possível, não sabia o que estava a dizer. Uma outra ordem se impunha, uma ordem
que aos seres humanos só é possível perscrutar a partir do velamento que a
nuvem impõe. A condição humana não suporta a luz e como tal a nuvem representa
a protecção dos homens e a explicação da incerteza que sempre envolve aqueles
que ouvem “Este é o meu Filho predilecto.
Escutai-o!” Ao homem não é oferecida nenhuma razão clara e distinta, nenhuma
certeza, que justifique o exercício da escuta. Como Pedro, João e Tiago, os
homens têm acesso a uma perplexidade fundamental. E é nesta perplexidade que se inscreve a
fé.
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