quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Transcendência e reciprocidade

Fernand Léger - A Boda (1910 - 1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem.» «Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.» (Mateus 7,7-12) [Comentário de Tomás de Aquino aqui]

O excerto seleccionado no evangelho de hoje apresenta uma estranha tensão entre aquilo que parece ser um conjunto de premissas (o que vai de “Pedi, e ser-vos-á dado… até …àqueles que lhas pedirem”) e o que se apresenta na forma de conclusão (“Portanto, o que...”). A tensão resulta das premissas se referirem à relação do homem com Deus, enquanto a conclusão se refere claramente a uma formulação da regra áurea, princípio primeiro de todas as éticas da reciprocidade, portanto de um assunto meramente humano. Como poderemos pensar este absurdo lógico-argumentativo que é derivar uma conclusão referente à simetria das relações entre os homens de um conjunto de premissas cujo conteúdo diz respeito à relação assimétrica entre o homem e Deus?

Uma das possibilidades, talvez a mais radical, é pôr de lado a concatenação lógica entre premissas e conclusão, abrindo a possibilidade de uma outra relação instaurada pelo discurso que não se inscreve na lógica apofântica. Essa possibilidade permite pensar, por exemplo, uma relação de precedência textual: aquilo que vem em primeiro lugar tem uma função de fundamento do que vem depois. Esta decisão ajuda-nos a perceber melhor o texto de Mateus? O que nos diz ela?

Diz-nos que a ética da reciprocidade – que é a essência da Lei mosaica e da sabedoria dos profetas –, com a sua natureza simétrica (faz ao outro aquilo que queres que ele te faça), tem a sua condição de possibilidade na relação assimétrica e misteriosa do homem com Deus. Do lado do homem está o pedido, a procura, o bater à porta. Do outro lado, está a dádiva, a presença e a abertura. Instruídos por esta relação assimétrica os homens podem abrir-se e doar aos outros homens esperando, segundo a principialidade de uma economia do dom, a abertura e a doação por parte do outro.

Se levarmos a exegese do texto mais longe, embora mantendo o critério hermenêutico adoptado, podemos mesmo compreender que aquilo que os homens têm para doar uns aos outros não é outra coisa senão aquilo que receberam na relação assimétrica com Deus. A sua abertura ao outro é feita à imagem e semelhança da abertura de Deus para com o homem. Se se considerar a regra áurea presente na ética da reciprocidade como elemento central da possibilidade de uma comunidade, o texto ensina-nos que essa comunidade só é possível se se fundar na transcendência. É esta que alimenta as relações interiores dessa comunidade e que lhes permite o carácter simétrico.

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