Wifredo Lam - O passo do medo (1969)
Naquele tempo, disse Jesus aos
seus discípulos: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso.» «Não
julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai
e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada,
transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros
será usada convosco.» (Lucas 6,36-38)
[Comentário de Juliana de Norwich aqui]
Como romper com uma visão enviesada pelo mero interesse próprio? Como
encontrar um caminho para o universal? O que se propõe aos homens é a
universalização do seu padrão de julgamento e a medida da sua conduta. Esta
proposta, contudo, não parte de um princípio abstracto e formal, mas do
confronto de cada um com a forma como julga e age. Se os gregos propugnavam
pela justa medida, pelo encontro quase aritmético de um equilíbrio, a
perspectiva proveniente das palavas de Cristo é mais directa, pois reverte
sobre cada um o padrão com que julga os outros e a medida como age em relação a
esses outros.
O texto é marcado por uma tensão entre o que poderíamos chamar um
pessimismo antropológico e um optimismo ontológico. Não há ilusão sobre a
natureza egoísta do homem. Por isso, é o interesse próprio que é mobilizado
para combater o enviesamento que esse mesmo interesse próprio introduz nos
juízos e acções dos homens. A moderação perante os outros é ainda resultado do desejo que se seja moderado
consigo.
Este pessimismo antropológico – a desconfiança radical no homem
deixado a si mesmo e conduzido pelo seu próprio critério – deve ser lido,
porém, em relação com a primeira injunção do texto: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. A misericórdia
divina, onde se configura o optimismo ontológico, é preeminente em relação ao
pessimismo perante o homem. Constitui-se como o modelo virtuoso que os homens
devem seguir, como o arquétipo que todas as nossas acções devem reflectir. Não
por acaso, na ordem textual, ele surge em primeiro lugar.
Porque os homens são pouco atentos à misericórdia e à sua realização
no mundo, é-lhes lembrado que a medida do seu julgamento e o padrão das suas
acções será o critério que sobre eles recairá. Dito numa outra linguagem,
quando os homens não sabem amar (nas diversas figuras que o amor pode tomar, que
podem ir do amor erótico à mera amizade cívica, passando pelas inúmeras formas que o amor pode apresentar), é preciso que aprendam a temer
as suas acções e os seus juízos. Por eles, serão julgados. Na economia do
texto, contudo, o temor representa já o sinal de um esquecimento fundamental, o
esquecimento do amor, o esquecimento da universalidade do amor presente na misericórdia.
O "interesse próprio" está indefectívelmente presente em cada um de nós, desde o momento da concepção, até ao do último batimento cardíaco.
ResponderEliminarPode esse interesse ser compreendido e conduzido de forma a fazer parte de uma energia cósmica, uma energia que tem por finalidade manter ininterrupta a renovação da vida no Universo?
A resposta (sendo esta a pergunta) é: Pode!
Se subirmos a uma montanha, e todos os acontecimentos verdadeiramente importantes para a Humanidade, tiveram origem no cume de altas montanhas e daí desceram, propagando-se depois entre os povos, temos a oportunidade de observar de lá, a pequenez do mundo que nos rodeia e de que fazemos parte, daí, a nossa própria pequenez. Percebemos então que precisamos descer a montanha e agregar-nos, oferecendo o contributo da nossa pequenez, para a formação dessa energia que invisivelmente nos mantém e faz com que caminhemos.
Isso significa, então, que o interesse próprio pode ser sublimado, tornado sublime ao ser desviado de si para aquilo que é diferente de si, para o outro.
EliminarPrecisamente.
ResponderEliminarDe uma forma geral, assim sucede de uma forma intangível. Caso contrário, o mundo já não existiria, da forma como o conhecemos.
Na minha modesta opinião.
O "interesse próprio" está indefectívelmente presente em cada um de nós, desde o momento da concepção, até ao do último batimento cardíaco
ResponderEliminarEstá mesmo?! Um bebé recem-nascido age em interesse próprio? Ou age em função da natureza instintiva?
Aceito que com a vivência no mundo actual (seja tradicional ocidental ou outra realidade), nós aprendemos a viver pelo ou com "interesse próprio".
Mas não será do nosso proprio interesse, o interesse dos outros também?
"Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso" - poderá Deus agir em interesse próprio quando misericordioso?
Se assumirmos a perfeição de Deus, e a visão do Cristianismo ser atingirmos a mesma perfeição (mesmo sabendo impossivel), é possivel vivermos sem interesse próprio? É da minha opinião que devemos tentar...
Possuímos uma inclinação natural, como diria Kant, para perseguir o interesse próprio. Isso é constitutivo da nossa animalidade. Mas como não somos meros animais, possuímos também uma disposição para o altruísmo e para agir desinteressadamente segundo aquilo que concebemos como sendo o bem. O cristianismo filia esta disposição na perfeição divina e propõe a atenção ao outro como caminho de perfeição.
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