Ivan N. Kramsko - Cristo no Deserto (1872)
Naquele tempo, Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-se do Jordão e
foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias, e era
tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, quando eles
terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: «Se és Filho de Deus, diz a esta
pedra que se transforme em pão.» Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: Nem só de
pão vive o homem.» Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num
instante, todos os reinos do universo e disse-lhe: «Dar-te-ei todo este poderio
e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te
prostrares diante de mim, tudo será teu.» Jesus respondeu-lhe: «Está escrito:
Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.» Em seguida,
conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: «Se
és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará
ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; e também: Hão-de levar-te
nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra.» Disse-lhe
Jesus: «Não tentarás ao Senhor, teu Deus.» Tendo esgotado toda a espécie de
tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo. (Lucas 4,1-13) [Comentário de Rafael
Arnaiz Baron aqui]
A meditação sobre as tentações de Cristo no deserto não pode ser
desligada do seu contexto. Este é o de um exercício ascético de purificação e
autodomínio. Olhadas deste ponto de vista, e tendo em conta o carácter das
tentações descritas, elas mostram o perigo que este domínio de si representa.
Esse perigo é o da vontade de poder. O poder sobre a natureza, o poder político
e social e o poder metafísico sobre o mundo espiritual e divino. Esta vontade de poder pode ser pensada em
ligação com a ideia de errância e de falhar o alvo existencial (ver aqui).
Seria o aspecto mais tenebroso dessa errância e dessa falência.
O texto de Lucas é uma crítica ao anseio da dominação fundado numa
autodominação. O desejo do poder é visto como uma tentação fundada no poder
sobre si mesmo. O que Cristo veio mostrar é que a ascese espiritual não é, não
deve ser, uma via para a constituição de um poderio sobre o real. Ao associar a
tentação à questão do poder, o texto de Lucas sublinha um aspecto que passa
muitas vezes despercebido. O carácter negativo do próprio poder, a sua origem
tenebrosa. Ele é uma coisa que tenta o homem, a tentação mostra-o como aquilo
que infringe a norma essencial que deve reger a existência dos homens.
O cristianismo rejeita desde a sua origem o mito prometaico, o
desejo de dominação sobre o real. Essa rejeição, todavia, não visa, como pretende a
leitura nietzschiana do cristianismo, a afirmação de uma vontade de poder dos
que são fracos e débeis para dominarem os fortes e poderosos, os transbordantes
de vida. Se se quer apresentar um texto que refute a interpretação nietzschiana
este é um deles. O que é mostrado é que toda a vontade de poder é uma patologia
da própria vontade, o sintoma de uma doença existencial, o sinal de que se
perdeu o alvo.
A ascese, o sacrifício, a resistência aos desejos e necessidades fazem
sentido, mas não como exercício propedêutico a uma dominação. Eles são um
princípio de instauração de uma outra relação do self com aquilo que o rodeia, uma forma de perder as ilusões e de
se abrir à verdade, à sua e à dos outros, à verdade também desse totalmente Outro,
que não se deixa envolver pelas maquinações de um ego errante e incapaz de
encontrar um horizonte, que se perverte no desejo de tudo poder. Ir para o deserto é o caminho para descobrir essa norma essencial, a norma que nos diz que devemos abandonar todas as pretensões ilusórias acerca da glória do nosso pequeno eu empírico.
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