quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O secreto e o manifesto

Jacinta Gil Roncalés - Hipócrita (1998)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles; de outro modo, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está no Céu. Quando, pois, deres esmola, não permitas que toquem trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: Já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo; e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te.» «Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. «E, quando jejuardes, não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que o teu jejum não seja conhecido dos homens, mas apenas do teu Pai que está presente no oculto; e o teu Pai, que vê no oculto, há-de recompensar-te.» (Mateus 6,1-6.16-18) [Comentário de Bento XVI aqui]

Uma das leituras possíveis do evangelho de hoje, Quarta-feira de Cinzas, é dada pela tensão entre dois pólos. O público e o privado, o secreto e o manifesto. A vida espiritual é marcada pela sua realidade interior e o segredo é a sua natureza. O segredo não resulta de uma decisão de exclusão do outro, mas é a própria operação do espírito, na intimidade de cada um, que é secreta, que não pode tornar-se pública sem que se degrade e se torne numa outra coisa, por vezes mesmo, como salienta o texto de Mateus, no mais claro exercício de hipocrisia. 

O espaço público é o lugar dos negócios deste mundo, o sítio da pólis e da economia, mas também o palco onde nos apresentamos enquanto pessoas. Apresentar-se enquanto pessoa não é apenas manifestar uma dignidade proveniente da nossa natureza racional. É também apresentar-se enquanto persona, enquanto máscara teatral. Este ser pessoa, com a sua dimensão de máscara, torna claro o que há de pura representação na vida pública, no teatro a que chamamos esfera pública.

 A vida do espírito é uma vida de presentificação, de tornar presente, e não de representação. O caminho é o de abandonar, passo a passo, a persona e apresentar-se na nudez e solidão do seu próprio ser. Nudez significa aqui a verdade de si mesmo, sem filtros, sem velamentos, sem a distorção que a relação com os outrosa exige ou, no mínimo, impõe.

Implica a vida espiritual uma fuga mundi? Não propriamente. Implica a separação clara das águas, a compreensão de que nas coisas do espírito a verdade e a autenticidade são os elementos centrais. Pode implicar mesmo uma presença no mundo, no espaço público de representação, como sinal e símbolo de uma outra possibilidade que ultrapasse a hipocrisia das máscaras individuais e distorção das ideologias, autênticas máscaras sociais. Isso será tornar manifesto um caminho secreto que cada um, no silêncio e na solidão, deve procurar.

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Nota: Com este post inicia-se uma série de comentários ao evangelho diário da liturgia católica. Este projecto durará, se tal for possível, o período da Quaresma. Sublinhe-se que não se pretende nem uma interpretação litúrgica nem teológica, para as quais não se possui competência. Os comentários visam uma confrontação dos textos com uma via espiritual que não abandona a razão e o exercício do pensamento filosófico. Os textos do evangelho serão sempre seguidos de um link para um comentário autorizado, do ponto de vista eclesial, desses textos. 

2 comentários:

  1. Perdoar-me-à, mas gostaria de conversar com o meu Amigo (na medida em que a blogsfera nos permite o uso da palavra "amigo") sobre o que penso relativamente à igreja, neste caso a católica.

    Este post, como todos os outros que publica, levam-me(nos) a pensar, reflectir e, porque não, meditar. Estamos, pois, perante uma questão que nos exigiria uma longa conversa.

    Assim, e sem pretender ser exaustiva, apenas coloco a questão que mais me angustia e que tem a ver com a bondade da igreja, ou melhor, com a bondade dos seus representantes.

    Cresci e fui criada segundo as regras da Igreja, só que, atingida que foi a idade adulta, comecei a aperceber-me de factos e comportamentos que nada têm a ver, na minha perspectiva, com os ensinamentos de Cristo.

    Não quero reportar-me às últimas notícias vindas a público sobre o comportamento de certos padres, não vou enveredar por aí - essa problemática levar-nos-ia muito longe - vou, isso sim, referir-me apenas a um aspecto que me abstenho de classificar: a riqueza da Igreja, a começar pelo próprio Vaticano, a ostentação, o desrespeito pelo irmão que nada tem.

    Não, isto não é demagogia!

    Nos primórdios da Igreja já se verificava este aspecto? Cristo expulsou os vendilhões do Templo, S. Francisco de Assis, e outros, fizeram voto de pobreza. E na actualidade?

    Estou "zangada" com a Igreja, sim, e o pior é que facto me entristece sobremaneira.

    Outro pequenino exemplo. Havia necessidade de construir, em Fátima, uma outra Igreja?

    Espero que desculpe o "desabafo".
    Acredite que passo sempre por este espaço com o maior prazer.


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    1. Que poderei dizer? Não tenho qualquer procuração da Igreja Católica para a defender, e o comportamento de alguns dos seus membros parece-me profundamente desadequado daquilo que são as propostas radicais que o Cristianismo veio trazer ao mundo. Gostava, no entanto, de sublinhar alguns aspectos:

      1.º As riquezas do Vaticano ou da Igreja. Não me pareceria boa ideia a venda dos imensos tesouros históricos e artísticos. Depois de vendidos, ficaria apenas dinheiro. Imaginemos que esse dinheiro era distribuído aos pobres. O resultado seria que os pobres continuariam a sê-lo e os bens estariam agora na mão dos muito ricos, seriam absolutamente privatizados. Por outro lado, apesar da real ostentação de muitos eclesiásticos, a Igreja Católica tem uma acção social muito meritória e que é o refúgio para muita gente em dificuldade.

      Concordo com o seu sentimento. De facto, os homens da Igreja deveriam ter uma presença mais humilde no mundo, deveriam evitar a ostentação, deveriam ser mais caridosos e entregarem-se menos a exercícios de exclusão e de afirmação da vontade de poder. Mas antes de serem da Igreja, eles são, como todos nós, homens, com tudo o que isso tem de grandioso e de perverso.

      2.º Deixe-me contar uma história vinda numa obra do século XIV, o Decámeron de Bocácio. Numa das narrativas, um cristão, negociante rico e honesto, era muito amigo de outro negociante, também rico e honrado, mas judeu. O cristão queria converter o judeu ao cristianismo e tanto andou que este disse que se converteria, mas só depois de ir a Roma e ver como se comportava a Cúria. O cristão ficou em pânico, pois se o judeu visse o comportamento daquela gente nunca mais se converteria. Não conseguiu, porém, demover o amigo e este foi a Roma, onde conheceu bem a situação do Vaticano, o luxo e o deboche que existia nele. Informado, voltou. O amigo sem qualquer esperança de realizar a conversão perguntou-lhe se ele se tinha inteirado do modo de vida do Vaticano. Ele respondeu que sim. O outro tornou-lhe: "então não te convertes". O judeu respondeu que sim, convertia-se ao cristianismo, pois era preciso que o Espírito Santo estivesse na Igreja para esta continuar a crescer e a afirmar-se, apesar do deboche e do luxo da Cúria.

      Esta história do século XIV mostra que o problema é bem antigo, mas que para lá dos homens há outra coisa.

      3.º O importante da Igreja, para lá dos comportamentos de muitos dos seus dirgentes, é que ela é o depósito de uma tradição espiritual, uma tradição que vai sendo transmitida de geração em geração, apesar dos homens que muitas vezes a dirigem. Também não tenho particular simpatia por uma atitude de exclusão dos outros, de defesa dos poderosos, de desrespeito pelos pobres e pelos mais frágeis (e em Portugal a maioria das pessoas é socialmente frágil). Mas isso não é o essencial. O essencial é que uma tradição espiritual seja transmitida, que se torne possível para as próximas gerações, uma tradição que, apesar de tudo e do mal que os homens fizeram em seu nome, tem tornado o mundo num lugar melhor. E isso é o mais importante.

      4.º Sobre a Igreja de Fátima. Não faço ideia se era precisa ou não. Gosto bastante da sua arquitectura, mas isso é outro assunto. Mas o dinheiro que foi gasto na obra pode ser visto como uma coisa boa. Deu trabalho a empresas, ajudou muita gente a ganhar o seu salário, talvez tenha criado oprtunidades de trabalho para outras pessoas. O dinheiro não foi desperdiçado, foi distribuído por muita gente e ajudou a economia desenvolver-se e as pessoas a encontrarem trabalho. Evitou que essas pessoas estivessem desempregadas. Desde que não tenha lá entrado dinheiro público, não me parece que a acção de construção mereça censura.

      Mas como lhe disse não tenho qualquer procuração da Igreja nem sou quadro da Igreja. O catolicismo faz parte da minha cultura de base e a sua mensagem espiritual, na radicalidade que contém, é coisa que ainda merece ser pensada.

      Agradeço o seu comentário e o diálogo assim estabelecido.

      HV

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