Marc Chagall - Caim e Abel (1911)
Naquele tempo, disse Jesus aos
seus discípulos: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu,
pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a
chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que
recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se
saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem
também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai
celeste.» (Mateus 5,43-48) [Comentário
de Policarpo de Esmirna aqui]
Como em outros textos, manifesta-se neste uma vontade deliberada de
corte com uma tradição. Esta tradição remete para um longo hábito social
fundado na reciprocidade, que ordena amar o próximo e odiar o inimigo.
O que se descobre não é a irrelevância da reciprocidade mas os seus limites. A
reciprocidade continua a ser um valor importante, mas ela é limitada pois
defende que ao mal se deve responder com o mal, o que reconduz ao eterno
ciclo de violência, no qual cada acto de vingança apenas tem por finalidade
acentuar e dinamizar a própria violência, levá-la a um estado paroxístico, para
cuja saída nas sociedades tradicionais, segundo René Girard, se instituiu a
crise sacrificial. Sendo assim, descobre-se que a reciprocidade não é um bem
último, um bem em si mesmo.
Podemos pensar as várias figuras em que a relação com o outro se
encontra no estado de suspensão da fraternidade, cujo arquétipo na cultura
judaica se dá no homicídio de Abel por Caim. O concorrente, o adversário, o
rival e o inimigo. Estas são figuras que, numa escalada do desejo conflituante,
rompem com a fraternidade e instauram o perigo da desagregação da vida em
comum, seja qual for o âmbito em que esta é considerada. Com o sublinhar da
necessidade de amar os inimigos e orar pelos perseguidores percebem-se duas
coisas essenciais.
Em primeiro lugar, do ponto de vista genético, a preeminência da
fraternidade entre os homens sobre as figuras do conflito, independentemente da
intensidade da oposição com que se apresentam. Em segundo lugar, a importância
estrutural, do ponto de vista da razão prática, da restauração dessa
fraternidade, de tal forma que o mandamento ético se consubstancia no amor
pelos inimigos e na oração pelos perseguidores. A perfeição, que surge no texto
de Mateus, ao mesmo tempo como conclusão narrativa e injunção ética, toma a
forma de uma equanimidade perante os homens, uma equanimidade que ordena que
todos sejam tratados como irmãos.
Esforço vão, o de Mateus, infelizmente...O que prevaleceu foi a ideia de que todos somos irmãos, mas há alguns mais irmãos do que outros.
ResponderEliminarNão, o esforço de Mateus não foi em vão. A ideia ficou, tornou-se uma ideia reguladora da consciência dos homens. Talvez sejamos, pela inclinação e pelo desejo, levado a agir contra a ideia, mas ela não deixa de estar aí pronta para nos acusar. E isso é já muita coisa.
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