Max Ernst - A primeira palavra límpida (1923)
Naquele tempo, Jesus falou assim
à multidão e aos seus discípulos: «Os doutores da Lei e os fariseus
instalaram-se na cátedra de Moisés. Fazei, pois, e observai tudo o que eles
disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem. Atam
fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles
não põem nem um dedo para os deslocar. Tudo o que fazem é com o fim de se
tornarem notados pelos homens. Por isso, alargam as filactérias e alongam as
orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os
primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de
serem chamados 'mestres’ pelos homens. Quanto a vós, não vos deixeis tratar por
'mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a
ninguém chameis 'Pai’, porque um só é o vosso 'Pai’: aquele que está no Céu. Nem
permitais que vos tratem por 'doutores’, porque um só é o vosso 'Doutor’:
Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado
e quem se humilhar será exaltado. (Mateus
23,1-12) [Comentário extraído das Sentenças
dos Padres do Deserto aqui]
O texto de Mateus, em muitos dos comentários que sobre ele são feitos,
parece ter como centro temático a questão da humildade, a crítica ao desejo de exaltação
orgulhosa de si mesmo. Contudo, a tensão entre humildade e orgulho é, na orgânica
textual, apenas derivada. Não é ela que surge em primeiro lugar, mas emerge como
consequência de uma outra temática mais fundamental.
Essa temática é a da autenticidade, a qual se funda num problema
relacionado com o estatuto do discurso de fariseus e doutores da lei. Este
discurso tem uma relação ambígua com a verdade. Do ponto de vista do conteúdo,
o discurso é verdadeiro, está de acordo com a instância de veridicção
autorizada, a qual é simbolizada pela expressão “cátedra de Moisés”. O que
fariseus e doutores da lei dizem inscreve-se na verdade da tradição mosaica,
por isso deve ser feito e observado.
O problema é que a verdade, no caso de fariseus e doutores da lei, não
tomou corpo e não se inscreveu no curso do mundo através da acção. Tornou-se
numa abstracção, em letra morta, em exercício de vanglória ou em exaltação da
razão erudita. Logos e praxis, verbo e acção, razão teórica e razão prática não
coincidem. A inautenticidade reside nesta não coincidência.
As várias figuras que no texto retratam o orgulho ou a exaltação
encontram a sua raiz na inautenticidade. Só a partir daqui poderemos
compreender o que são a humilhação e a conduta humilde. A humilhação é a tarefa
de recuperação da autenticidade, e a humildade é a conduta autêntica. Isto significa fazer coincidir a palavra e a acção, recuperar a integralidade de si-mesmo,
ao praticar a palavra que se profere. Palavra que fariseus e
doutores da lei tinham rompido, ao descarregar de si mesmos o peso deontológico
que ela transporta consigo.
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