O desejo de um corpo é muitas vezes mais do que um desejo corporal, de satisfação dos sentidos, se é que esta expressão descreve seja o que for na paixão erótica. A imaginação trabalha sobre o corpo desejado e, se esse desejo nunca foi consumado, ela abre uma clareira onde tudo se ilumina. Desejo aquela pessoa, pressinto o seu corpo a chegar junto do meu, a sua na minha boca. Mas não é aqui que está a verdade desse desejo. Há qualquer coisa inapreensível que me faz querer aquela pessoa e não outras, ou não muitas das outras que existem. É esse “qualquer coisa” que contém um segredo e é nesse segredo que se inscreve o meu desejo. É um facto que desejo aquele corpo, aqueles lábios, desejo ter a minha mão sobre aquela pele, desejo fundir-me naquela pessoa e amá-la, desejo a perdição do sexo e o fulgor de um beijo, desejo que aquele corpo me solicite e se torne solícito à minha solicitação. Mas nada disso ainda tem sentido, nada disso é relevante, nada disse me mostra a essência do meu desejo que se manifesta no desejar daquela pessoa. Pressinto que, para além do corpo desejado e da fusão desses corpos no jogo do amor, há um espírito que se reconhece, talvez por breves instantes, noutro espírito e que, mais do que os corpos, são eles, esses estranhos habitantes das nossas pessoas, que se desejam e que, mais de que todo o resto, desejam fundir-se. Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez. Mas para que isso se torne compreensível, há que pôr de lado aquilo que popularmente se entende por amor platónico.
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