segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (350)

Isidre Nonell Monturiol - Miséria (1904)

350. VIVEMOS OS DIAS EM QUE A POBREZA SE TORNA NATURAL

Vivemos os dias em que a pobreza se torna natural,
pedra de calcário arremessada no caminho,
um jogo de palavras que fecha portas e janelas,
casas de súbito assoladas pelo incêndio,
o devastador sorriso nos que têm império.

Sou o mais pobre entre todos os pobres,
pois nem minhas são as palavras com que escrevo.
Nada tenho, nada espero, nada quero.
A morte virá e tornar-me-á tão rico
como qualquer outro que para ela foi arrastado.

Dói-me, porém, a roda do mundo
e o destino avaro a cair sempre sobre os mesmos.
Dói-me a desfaçatez dos incendiários,
a insolência dos que ordenam os jogos,
o despudor homicida dos maiorais.

Entro para o segredo que habita a floresta,
os míseros matagais da infância,
o grito inapagado do vento norte.
Conto os ramos secos e os ninhos abandonados,
e essa é agora a única pátria que me resta.

3 comentários:

  1. Era uma vez uma velha, muito velha, muito abandonada e desgraçada, uma velha tão velha tão velha, mas tão velha que devia ter nascido com o próprio mundo.
    A velha vivia no lugar das terras de ninguém, à saída da aldeia, numa cabana de paus e colmo, sem nenhuma companhia.
    De seu, a velha só tinha uma manta, com que se cobria em chegando a noite, uma côdea de pão já seco que ía comendo a pouco e pouco, e uma linda e viçosa pereira que era a sua maior alegria.
    É que mesmo naquele desamparo a velha era quase feliz, e digo quase porque havia uma única apoquentação na vida da Ti Miséria,os moços que ao passarem para a escola, todos os dias, todos os dias mesmo, subiam à pereira, a pereira mai linda e viçosa que já se vira, e os moços todos os dias arrancavam pêras e troçavam da velha, quando ela saía da sua cabana com um pau na mão a enxotar o raio dos moços.
    - Vão-se daqui, diabos, vão-se daqui, deixem a minha pereira.
    Um dia, passou por aquele lugar um viandante, apoiado num cajado encimado por uma vieira, foi batendo de porta em porta a pedir guarida, mas aquela aldeia era ceia de gente desconfiada e todos lhe disseram que não. Saíndo da aldeia o viandante passou pelo lugarejo onde vivia a Ti Miséria.
    A velha estava sentada na soleira da porta, olhando a sua linda pereira.
    O viandante pediu à Ti Miséria que o deixasse ali dormir uma noite, e a velha assentiu, mas foi logo dizendo:
    - Pouco ou nada tenho, mas se precisares podes cobrir-te com a minha manta e comer as migalhas do meu pão.
    E assim foi. Em chegando a manhã o viandante pôs-se ao caminho mas antes contou à velha que tinha poderes especiais e que poderia conceder-lhe um desejo que lhe aligeirasse a vida dura.
    Ti Miséria não se lembrando de nada disse ao viandante que nada desejava
    - Umas roupinhas novas? Uma casinha maior? Algum dinheirinho? Ou um homem para as noites frias?
    -Ora, ora, para que havia eu de querer tais coisas, eu não estou precisada de nada, vai lá à tua vida e não desperdices os teus dons comigo que sou velha.
    Estava o viandante já no caminho de terra batida quando a velha deu um valente grito:
    -Ó do cajado! Já sei o que quero, volta aqui!

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  2. Ti Miséria pediu ao viandante que fizesse com que quem subisse a sua linda pereira ficasse preso lá em cima até que ela ordenasse a descida.
    Assim foi.
    No dia seguinte os moços endiabrados passaram a caminho da escola e subiram à pereira, mas quando quiseram descer não puderam.
    A velha assomou-se à porta e rindo com um riso escarninho, abriu muito os olhos e disse:
    - Que vos fique de emenda, se quiserem pêras peçam-mas mas não roubem nunca mais, e agora vão-se daqui duma vez!
    Os moços saíram a correr e nunca mais ali entraram.
    Ti Miséria era agora feliz.
    Algum tempo mais tarde passou por ali outro viandante, mas este não andou de porta em porta, foi direitinho à casa da velha.
    Encontrou-a sentada, olhando a sua linda pereira.
    Aquele viandante não tocava com os pés no chão, trazia o semblante fechado e uma longa capa cobria-lhe o corpo e a cabeça
    -Quem é tu? Diaxo?- disse a velha.
    - Sou a Morte e venho buscar-te.
    -Ui ui uiui ui ui ui, vai-te daqui senão...
    - Anda Ti Miséria chegou a tua vez.
    - Mas eu estou aqui tão bem, eu mais a minha linda e viçosa pereira, numa santa paz, sem fazer mal a uma mosca, decerto arranjas por aí melhor companhia.
    - Levanta-te velha, vamos embora.
    E quando a velha se levantou um vento sacudiu a pereira fazendo tombar várias folhas mesmo em cima da Morte.
    A velha então teve uma ideia:
    - Ó Morte, eu sei que sou velha e revelha, eu aceito ir-me contigo, mas faz-me um último favor ó Morte, sobe aquela pereira e traz-me uma última pêra, que lá para donde me levas não as há tão docinhas e sumarentas como as minhas.
    A Morte assim fez, subiu ao cimo da pereira e arrancou uma pêra mas quando ía para descer a velha desatou a rir,num riso escarninho:
    - Agora ficas aí, daí ninguém desce sem que eu deixe, e eu não te vou deixar.
    A Morte ainda protestou mas de nada adiantou , a velha não queria saber. Agora que era mesmo feliz não se queria ir embora.
    Passaram-se dias e semanas e a Morte ali estava, os médicos desesperavam, os coveiros já tinham fome, os boticários sem negócio, nada nem ninguém morria.
    Juntaram-se as pessoas da aldeia a pedir à Ti Miséria que soltasse a Morte, que aceitasse o seu destino.
    A velha lá se apiedou quando ouviu uma mulher contar que tinha os seus sete filhinhos atordoados de fome pois não conseguia matar uma galinha velha que lá tinha para lhes fazer uma canja.
    Ti Miséria aproximou-se da pereira e propôs um acordo à Morte
    - Ó Morte queres descer daí?
    - Ó velha, eu tenho que sair daqui, que o mundo sem mim já anda em desalinho.
    -Então Morte, se me deixares aqui, quieta no meu canto, eu mais a minha manta a minha côdea e a minha linda pereira, eu deixo-te descer daí,mas tens que me prometer que eu fico aqui para sempre.
    Então a Morte aceitou a proposta da velha, e é por isso que no mundo sempre haverá Morte e Miséria.
    (conto popular português, recontado por mim, e com um pedido de desculpas pela extensão do comentário)

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  3. Não tem que pedir desculpa e, aliás, diverti-me. As narrativas populares têm sempre algo de essencial sobre a vida. Por isso, são populares.

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