quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Poemas do Viandante
144. OLHAR
pouso a mão
sobre o tampo da mesa
e deixo deslizar pelo pânico
o olhar que se abre
no coração
a terra fria e desolada
queima-me os olhos
e como um grito
que cruza a noite
desagua na folha curva
o rumor da solidão
pouso a mão
sobre o tampo da mesa
e deixo deslizar pelo pânico
o olhar que se abre
no coração
a terra fria e desolada
queima-me os olhos
e como um grito
que cruza a noite
desagua na folha curva
o rumor da solidão
domingo, 19 de dezembro de 2010
Poemas do Viandante
143. INCÊNDIO DE PEDRA
um incêndio de pedra
adormeceu na seda
onde a noite se cobria
um arcanjo cantava
para que do fogo
viesse lento o dia
um incêndio de pedra
adormeceu na seda
onde a noite se cobria
um arcanjo cantava
para que do fogo
viesse lento o dia
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Poemas do Viandante
142. JUSTIÇA
as pétalas de seda
que atiravam sobre quem passava
o som dos tambores ao longe
a promessa nunca paga
do que somos cúmplices
ainda não o sabemos
enumeramos crimes
pétalas caídas
juras por cumprir
quando ele vier
saberemos o que nos cabe
o peso das nuvens
a leve misericórdia
que não merecemos
as pétalas de seda
que atiravam sobre quem passava
o som dos tambores ao longe
a promessa nunca paga
do que somos cúmplices
ainda não o sabemos
enumeramos crimes
pétalas caídas
juras por cumprir
quando ele vier
saberemos o que nos cabe
o peso das nuvens
a leve misericórdia
que não merecemos
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Poemas do Viandante
141. CORAÇÃO
se o coração pulsar
quando vier a noite
e assustado correr
batendo portas
riscando a giz e carvão
paredes ávidas de sinais
se o coração calar
a mágoa dessa ausência
o deserto de minha alma
quando espero e não vens
se assim se calar
ressoará ainda na terra árida
o exausto coração?
se o coração pulsar
quando vier a noite
e assustado correr
batendo portas
riscando a giz e carvão
paredes ávidas de sinais
se o coração calar
a mágoa dessa ausência
o deserto de minha alma
quando espero e não vens
se assim se calar
ressoará ainda na terra árida
o exausto coração?
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Poemas do Viandante
140. AMOR
a prova do amor
a longa noite
onde o corpo arde
e a terra crepita
sob os teus olhos
silenciosos
à luz da cítara
a prova do amor
a longa noite
onde o corpo arde
e a terra crepita
sob os teus olhos
silenciosos
à luz da cítara
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Poemas do Viandante
139. METÁFORAS
tristes e pobres
as metáforas
que me couberam
vieram até mim
e tocaram-me com
os dedos esquálidos
de quem foge
à luz da madrugada
tristes e pobres
as metáforas
que me couberam
vieram até mim
e tocaram-me com
os dedos esquálidos
de quem foge
à luz da madrugada
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Poemas do Viandante
138. AZUL
o azul desprendia-se do céu e
caía em flocos
sobre praças e rios
caía pelos cabelos
de mulheres exaustas
caía nos bosques verdes
de musgos sombrios
o azul que do céu se desprendia
o azul desprendia-se do céu e
caía em flocos
sobre praças e rios
caía pelos cabelos
de mulheres exaustas
caía nos bosques verdes
de musgos sombrios
o azul que do céu se desprendia
sábado, 27 de novembro de 2010
Poemas do Viandante
137. RECOLHIMENTO
recolho-me na tarde
o sol mortiço
ainda lembra o alvoroço
com que os dias grandes
eram recebidos
a luz não mais terminava
a noite hesitava chegar
o véu que da memória vinha
quebrava o embaraço
com que esperava
recolho-me na tarde
o sol mortiço
ainda lembra o alvoroço
com que os dias grandes
eram recebidos
a luz não mais terminava
a noite hesitava chegar
o véu que da memória vinha
quebrava o embaraço
com que esperava
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Poemas do Viandante
136. PALAVRA
essa palavra tão elementar
rio nocturno
a brilhar na distância
que vai do medo
à solidão
com ela falavas
do sofrimento
esse estranho ardor
mais próximo do abandono
mais próximo do verão
ofício de silêncio
no segredo que esconde o
frio fogo do amor
essa palavra tão elementar
rio nocturno
a brilhar na distância
que vai do medo
à solidão
com ela falavas
do sofrimento
esse estranho ardor
mais próximo do abandono
mais próximo do verão
ofício de silêncio
no segredo que esconde o
frio fogo do amor
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Poemas do Viandante
135. FRIO
veio o frio
sobre a distância
que separa
veio cego
e de mão decepada
lança uma chama
de vidro
como se a vida fora
uma rosa esquecida
no coração
da madrugada
veio o frio
sobre a distância
que separa
veio cego
e de mão decepada
lança uma chama
de vidro
como se a vida fora
uma rosa esquecida
no coração
da madrugada
domingo, 21 de novembro de 2010
Cântico
Se um deus em mim um canto rememora
é para que da luz da tarde esqueça
o fulgor insensato, ela o derrama,
e da vida só sombras me devorem.
Canto, sagrado canto, eu te oiço,
quando passam as nuvens frias do céu.
O Verão breve foi e desse Outono
ténue luz desfolhada arde e se vai.
Leve, de mim se afasta, se encobre
na floresta sombria e opaca, o pássaro
que da ventura o nome sempre sabe.
Olho-o. Vendo-me, logo se ergue e voa.
Arrasto pelo chão os dedos feridos,
mas a morte tão longe ainda vem,
mesmo que sobrevenha neste instante,
tão tarde ela será para que a cante.
é para que da luz da tarde esqueça
o fulgor insensato, ela o derrama,
e da vida só sombras me devorem.
Canto, sagrado canto, eu te oiço,
quando passam as nuvens frias do céu.
O Verão breve foi e desse Outono
ténue luz desfolhada arde e se vai.
Leve, de mim se afasta, se encobre
na floresta sombria e opaca, o pássaro
que da ventura o nome sempre sabe.
Olho-o. Vendo-me, logo se ergue e voa.
Arrasto pelo chão os dedos feridos,
mas a morte tão longe ainda vem,
mesmo que sobrevenha neste instante,
tão tarde ela será para que a cante.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Do ponto de partida
Múltiplas são as armadilhas que espreitam o caminho do viandante. Uma das mais obstinadas é a do sentimento de necessidade de um princípio ou ponto de partida. Esse sentimento de necessidade extrema de um princípio seguro obsidia aquele que caminha. Quando se caminha há a estranha sensação de incompletude, de falta, de uma falta originária. A inquietação dissemina-se e o viandante não sabe onde colocar os pés nem qual o lugar que ocupa. Esse sentimento de falta de um princípio toca toda a viagem, fazendo com que ela seja percepcionada como coisa pouco sólida, pois não existe a solidez de um fundamento. Em vez de caminhar, ele fica preso na busca desse princípio originário, desse alicerce sólido que lhe permitiria caminhar com toda a segurança. Mas tudo isto é mera distracção, fuga perante a realidade. E a realidade é crua: não há fundamento, nem ponto de partida, nem solidez ou segurança. A viagem não começou nunca, apenas estamos já nela e não há companhia de seguros que nos assegure um destino ou a tranquilidade da marcha. Há apenas o entregar-se a ela, puro e livre.
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Viagem
sábado, 11 de setembro de 2010
Poemas do viandante
133. DESEJO
furtivo
o nome
que empunhas
crua adaga
que te abre o corpo
para o desejo
nem a luz
o apaga
furtivo
o nome
que empunhas
crua adaga
que te abre o corpo
para o desejo
nem a luz
o apaga
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Poemas do viandante
132. DISTÂNCIA
o delicado traço
com que desenhas
a palavra
o âmbar inquieto
que ilumina
o coração
assim nasce
a irremediável
distância
que torna perto
a luz que se abra
na escuridão
o delicado traço
com que desenhas
a palavra
o âmbar inquieto
que ilumina
o coração
assim nasce
a irremediável
distância
que torna perto
a luz que se abra
na escuridão
domingo, 5 de setembro de 2010
Poemas do viandante
131. PROMESSA
até onde chegarão
estas palavras
haverá peso
dentro delas
que as adormeça
ao caminhar
haverá uma promessa
de luz sobre o pântano
a bandeira desfraldada
anuncia o súbito vigor da maré
até onde chegarão
estas palavras
haverá peso
dentro delas
que as adormeça
ao caminhar
haverá uma promessa
de luz sobre o pântano
a bandeira desfraldada
anuncia o súbito vigor da maré
sábado, 4 de setembro de 2010
Poemas do viandante
130. SE…
a margem infestada
de canas
um barco presume
o restolhar das águas
a noite em flocos
de trigo
se tudo ainda cantasse
ou se as rosas abrissem
o dia pelo cheiro
não haveria pó pelo chão
ou um punho cerrado
coberto pelo ouro
sedicioso
dessa boca fechada
sobre a solidão
a margem infestada
de canas
um barco presume
o restolhar das águas
a noite em flocos
de trigo
se tudo ainda cantasse
ou se as rosas abrissem
o dia pelo cheiro
não haveria pó pelo chão
ou um punho cerrado
coberto pelo ouro
sedicioso
dessa boca fechada
sobre a solidão
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Poemas do viandante
129. A CASA
deste-me uma casa
por desabrigo
ali durmo esperando
que portadas
se abram ou fechem
segundo a vontade
de um senhor
sem nome sem lei
velho arconte
do lago e do rio
das flores abraçadas
pelas mãos recalcitrantes
das carpideiras
deste-me uma casa
nela espero
transido de frio
olhos coagulados
espiões sombrios
olham de longe
ou passam velozes
em relâmpagos de cinza
aí pende o relógio
a casa que me deste
deste-me uma casa
por desabrigo
ali durmo esperando
que portadas
se abram ou fechem
segundo a vontade
de um senhor
sem nome sem lei
velho arconte
do lago e do rio
das flores abraçadas
pelas mãos recalcitrantes
das carpideiras
deste-me uma casa
nela espero
transido de frio
olhos coagulados
espiões sombrios
olham de longe
ou passam velozes
em relâmpagos de cinza
aí pende o relógio
a casa que me deste
domingo, 29 de agosto de 2010
Poemas do viandante
127. TEMPO (4)
regato arruinado
o jardim
esquecido
sob a sombra
de uma pedra
o granito
se grasna um corvo
se a noite ondula
se a tua voz se cala
rosa
branca rosa
que ave te roubou
o jardim materno
regato arruinado
o jardim
esquecido
sob a sombra
de uma pedra
o granito
se grasna um corvo
se a noite ondula
se a tua voz se cala
rosa
branca rosa
que ave te roubou
o jardim materno
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Poemas do viandante
126. TEMPO (3)
o murmúrio da erva
na terra a arder
a porta que se abre
quando chamas
sombra da sombra
o que resta do coração
o murmúrio da erva
na terra a arder
a porta que se abre
quando chamas
sombra da sombra
o que resta do coração
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Poemas do viandante
125. TEMPO (2)
a friagem
o outono a trouxe
branca
ilha de sal
e cinza
e calcário
fruto caído
no refúgio
esquecido do
calendário
a friagem
o outono a trouxe
branca
ilha de sal
e cinza
e calcário
fruto caído
no refúgio
esquecido do
calendário
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Poemas do viandante
128. A CANSADA MÃO
exausto chegou
o viandante
a chuva sobre os ombros
um vento de floresta
zune nos ouvidos
e o rumor de todas as
cidades
aberto como um punho
de mirtilos e framboesas
a escorrer da tua boca
de que vale a viagem
se o silêncio
pontua a sombra
que desce nesses olhos
e vela a flor
que o verão escondeu
sob os seios
que se arrancam
à cansada mão
que deseja
exausto chegou
o viandante
a chuva sobre os ombros
um vento de floresta
zune nos ouvidos
e o rumor de todas as
cidades
aberto como um punho
de mirtilos e framboesas
a escorrer da tua boca
de que vale a viagem
se o silêncio
pontua a sombra
que desce nesses olhos
e vela a flor
que o verão escondeu
sob os seios
que se arrancam
à cansada mão
que deseja
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Poemas do viandante
123. ROMÃ
o resto de romã
a arder na boca
a madeixa
tocada pelo vento
o silêncio entreaberto
dos lábios
tudo isso
testemunho
se aguardo
o toque dos sinos
num mar de lilases
e cristais de seda
um cão uiva
o coração afogado
na boca de lilás
nos lábios presos
ao fértil anoitecer
da breve romã
o resto de romã
a arder na boca
a madeixa
tocada pelo vento
o silêncio entreaberto
dos lábios
tudo isso
testemunho
se aguardo
o toque dos sinos
num mar de lilases
e cristais de seda
um cão uiva
o coração afogado
na boca de lilás
nos lábios presos
ao fértil anoitecer
da breve romã
terça-feira, 10 de agosto de 2010
Poemas do viandante
122. INVERNO
o crepitar da sombra
abre uma rua
de luz sob o olhar
com que incendeias
o mundo
casas árvores um rio
tudo arde na encosta
do inverno que
se anuncia
coração tolhido
pela cor extasiada
do frio
o crepitar da sombra
abre uma rua
de luz sob o olhar
com que incendeias
o mundo
casas árvores um rio
tudo arde na encosta
do inverno que
se anuncia
coração tolhido
pela cor extasiada
do frio
terça-feira, 3 de agosto de 2010
Poemas do viandante
121. LINGUAGEM
a linguagem
flor obscura
que me atormenta
abre-se tempestuosa
no rumor do meio-dia
como pétalas
caem palavras
constelações de letras
um suspiro de algas
a breve folha da laranjeira
na névoa
agora desfiada
resta o eco de um nome
promessa de areia
na penumbra dos sentidos
a linguagem
flor obscura
que me atormenta
abre-se tempestuosa
no rumor do meio-dia
como pétalas
caem palavras
constelações de letras
um suspiro de algas
a breve folha da laranjeira
na névoa
agora desfiada
resta o eco de um nome
promessa de areia
na penumbra dos sentidos
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Tudo o que não sou
A suposição de ser alguma coisa, essa herança construída pela coligação entre as gramáticas indo-europeias e a filosofia grega - onde aquelas se pensaram e tomaram consciência de si -, é a imagem de uma infância nunca abandonada. Não daquela infância onde tudo é inédito e uma ânsia conduz à descoberta do mundo, mas da outra infância, concomitante dessa, aquela em que se luta desesperadamente para se convencer a si mesmo que se é alguma coisa, que se tem um lugar no mundo e uma voz que deve ser ouvida. Aquilo, porém, que poucos confessam é que esse convencimento é precário e que, no fundo de nós, uma dúvida persistente lança uma sombra sobre o que somos, o lugar que ocupamos, a voz que fazemos ouvir. Se deitarmos borda fora tudo isso, será que perdemos alguma coisa? Posso perder tudo o que não sou. Isso bastará? Não. É preciso ir mais longe. Não basta perder aquilo que não se é. É preciso perder aquilo que se é, mesmo que não saibamos o que somos. Aí haverá, então, a esperança de encontrar a voz do coração. Não a do nosso, porque o coração que fala não tem proprietário. É só uma voz, vinda sabe-se lá de onde, que clama no deserto.
Poemas do viandante
120. A MINHA ALDEIA
a súbita fome
esse olhar que escondia
as últimas cerejas e
o cansaço de ser tão humano
disposto na luz e nas trevas
a mão hirta a rasgar oceanos
de joelhos na madrugada
deixo correr o silêncio
aí vazam os sinos –
um dia encheram de vida
o desvão da memória
a que chamo minha aldeia
a súbita fome
esse olhar que escondia
as últimas cerejas e
o cansaço de ser tão humano
disposto na luz e nas trevas
a mão hirta a rasgar oceanos
de joelhos na madrugada
deixo correr o silêncio
aí vazam os sinos –
um dia encheram de vida
o desvão da memória
a que chamo minha aldeia
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Poemas do viandante
119. A MAÇÃ
o voo da maçã
na história
daquela mão
dança como
a nostalgia
que chega
pelos dias
de setembro
se olhas
já não vês
imagens são
pequenos pontos
de erva e vento
neles
a cegueira cresce
inundando de luz
a maçã pousada
nessa mão
o voo da maçã
na história
daquela mão
dança como
a nostalgia
que chega
pelos dias
de setembro
se olhas
já não vês
imagens são
pequenos pontos
de erva e vento
neles
a cegueira cresce
inundando de luz
a maçã pousada
nessa mão
domingo, 25 de julho de 2010
Poemas do viandante
118. VIDA
cinza abre-se
na água
que corre
daqueles olhos
um sonho
o tempo de calcário
a flauta incendiada
onde repousa
a vida perdida
entre escolhos
cinza abre-se
na água
que corre
daqueles olhos
um sonho
o tempo de calcário
a flauta incendiada
onde repousa
a vida perdida
entre escolhos
sábado, 24 de julho de 2010
Poemas do viandante
117. FUTURO
o futuro não é a rosa
ou o silêncio seco
das tardes de verão
branco como um muro
de quinta
chega quando
as andorinhas partem
- sob a tua luz -
para a inquietação
do sul
o futuro não é a rosa
ou o silêncio seco
das tardes de verão
branco como um muro
de quinta
chega quando
as andorinhas partem
- sob a tua luz -
para a inquietação
do sul
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Poemas do viandante
116. ENIGMA
um fogo de ervas
no palácio
onde o rei
te espera
uma flor inclinada
como um enigma
na boca
da tarde
um traço de sombra
respira
no coração
que desperta
um fogo de ervas
no palácio
onde o rei
te espera
uma flor inclinada
como um enigma
na boca
da tarde
um traço de sombra
respira
no coração
que desperta
domingo, 11 de julho de 2010
Poemas do viandante
115. ÁRVORE
deixar vir
a árvore
com a sua
cegueira
espalhar
entre tufos
de joio
a sombra verde
do trigo
deixar vir
a árvore
com a sua
cegueira
espalhar
entre tufos
de joio
a sombra verde
do trigo
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Poemas do viandante
114. PALAVRA
a palavra
sombra
de água
no jardim
a que chamas
porto
navios
gaivotas
círculos
sobre os ombros
aí suportas
o mundo
a palavra
sombra
de água
no jardim
a que chamas
porto
navios
gaivotas
círculos
sobre os ombros
aí suportas
o mundo
quarta-feira, 7 de julho de 2010
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Dessubjectivação
Um dia de calor. Tudo se torna mais difícil. Aquilo que se exige é agora, mais que em outros dias, um campo de negação de si mesmo, um território de oblação e sacrifício. Cumprir cada uma das tarefas, não esperando nada delas, mas oferecendo-as como aprendizagem do esquecimento de si. Uso a palavra dessubjectivação. Este cumprir do dever como uma entrega e negação da vontade própria é uma forma de dessubjectivação, um rasgar da máscara, um passo para além da ilusão da nossa substancialidade. A dessubjectivação não é obrigatoriamente, como muitas vezes acontece, uma alienação, um estranhamento. Pode ser um passo para a clareira onde O que não vemos se manifesta. No sacrifício das tarefas quotidianas encontramos um caminho, um difícil caminho para quem sente o apelo da quietude. Mas há que cumprir essa Vontade que não é a nossa.
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sábado, 3 de julho de 2010
Poemas do viandante
112. FOLHA
a folha tocada
pelo silêncio
inclina-se
deixa o vento
passar por ela
suspende a noite
se a seiva
dos teus dedos
se demora nela
a folha tocada
pelo silêncio
inclina-se
deixa o vento
passar por ela
suspende a noite
se a seiva
dos teus dedos
se demora nela
segunda-feira, 28 de junho de 2010
Poemas do viandante
111. NOITE
um jardim
no silêncio do mar
a noite aberta
pela raiz
algas e mãos
a face lívida
na súbita
ondulação
aí me perco
para te escutar
um jardim
no silêncio do mar
a noite aberta
pela raiz
algas e mãos
a face lívida
na súbita
ondulação
aí me perco
para te escutar
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Poemas do viandante
110. CÂNTICO
tudo reverbera
fecho os olhos
e vejo-te
no cântico
que ao declinar
o dia traz
tudo reverbera
fecho os olhos
e vejo-te
no cântico
que ao declinar
o dia traz
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Poemas do viandante
109. TARDE
a tarde sobre
a ravina
pássaros de papel
e sangue
a buganvília
na sombra
da qual
espero
a tarde sobre
a ravina
pássaros de papel
e sangue
a buganvília
na sombra
da qual
espero
terça-feira, 22 de junho de 2010
Sobre a morte de José Saramago
Nestes dias, aqueles que a morte de José Saramago ocupou, muitas coisas sem nexo foram ditas. Sublinho, no entanto, aquela que assumiu o cúmulo da irrelevância. Disse L'Osservatore Romano que Saramago "foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo." Como é possível dizer uma coisa destas? Em primeiro lugar, porque o materialismo dialéctico e o marxismo não passam de metafísica, de uma dada metafísica materialista, mas ainda e só metafísica. Em segundo lugar e mais importante, porque, tendo em conta aquilo que li de Saramago, só a metafísica o parecia interessar.
Mesmo a blasfémia, se é que Saramago era um autor blasfemo, é um louvor a Deus. Mas a recorrência da temática religiosa nas suas obras, mesmo que sejam pequenas notas de raspão, é um confronto de uma subjectividade com o terrível silêncio de Deus. Em Saramago havia uma pulsão de neo-converso ao contrário. Era como se o escritor fosse uma espécie de Paulo de Tarso, mas aspirasse ser um João Evangelista ou, de outra forma, um daqueles monges do deserto que fazem a história inicial da mística cristã. Perante a impossibilidade, ele assumia-se então como um S. Paulo ainda quando tomava o nome de Saulo.
A obra e a personalidade do escritor são o exemplo de uma luta metafísica, uma luta trágica, e deveriam merecer uma atenção redobrada, em vez da lamentável nota de L'Osservatore Romano. Saramago é um exemplo de como a crença na subjectividade própria impede de escutar Aquele que fala no silêncio e na pobreza do deserto. A ânsia de encontrar Deus, de o fazer manifestar-se, e a ânsia de salvar o ego tolheram em Saramago o caminho, transformaram-no numa luta titânica desvairada e fecharam-no dentro de si e no mundo, sempre um pequeno mundo, por amplo que seja. Há aqui mais do que um simples negador, há aqui um exemplo do destino do Ocidente. E não apenas daqueles que não conseguem silenciar-se, não conseguem silenciar a ânsia e o desejo que povoa o ego empírico, para que possam escutar Quem fala, mas também um exemplo de como aqueles que detêm o depósito da palavra já não a percebem ou não conseguem dá-la a perceber.
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Poemas do viandante
108. INCLINAÇÃO
tudo se tornou
mais raso
a água
o fogo
as planícies
pelo sul
inclino a cabeça
e oiço uma voz
branca
no verde
da colina
de onde espreitas
tudo se tornou
mais raso
a água
o fogo
as planícies
pelo sul
inclino a cabeça
e oiço uma voz
branca
no verde
da colina
de onde espreitas
quarta-feira, 2 de junho de 2010
Poemas do viandante
107. SOMBRA
emudecido
as mãos cobertas
de pústulas
uma noite
de palavras
e sombra
rasto na areia
a saudade
na janela
de onde avisto
o silêncio
que espera
emudecido
as mãos cobertas
de pústulas
uma noite
de palavras
e sombra
rasto na areia
a saudade
na janela
de onde avisto
o silêncio
que espera
terça-feira, 25 de maio de 2010
A questão e a resposta
Nous devenons nous-mêmes Son écho et Sa réponse, comme si, en nous créant, Dieu nous avait posé une question, et qu'en nous appelant à la contemplation Il y répondît, de sorte que le contemplatif est, à la fois, question e réponse. Thomas Merton (1963). Semences de contemplation. Paris: Seuil, p. 11.
Quando se fala do homo viator, daquele que é viandante, fala-se do que faz a viagem entre a questão posta e a resposta a dar. De certa maneira, qualquer ser humano, e não apenas o tecnicamente contemplativo, está na viagem que vai da questão posta à resposta a dar.
O jogo do questionar e do responder, porém, não é tão fácil como aparenta à primeira vista. Se na sua formulação parece, e de certa maneira é, um jogo infantil, a quantidade daqueles que deambulam sem saber que questão são ou que resposta representam mostra a dificuldade e os perigos da aventura.
A primeira dificuldade nasce na nossa incapacidade em nos tomarmos por uma questão. Habituámo-nos, desde a hora que nascemos, a representarmo-nos por uma frase declarativa (eu sou x, ou eu sou y; a estrutura destas frases pode ser designada assim: a é b). Esta declaratividade tranquiliza-nos e põem-nos em segurança. Mesmo que, mais tarde, duvidemos do conteúdo proposicional da declaração (isto é, não saibamos bem se somos x ou y), somos incapazes de olhar para nós mesmos como questão.
A primeira razão deve-se ao fascínio da declaratividade. Mesmo que o conteúdo da frase declarativa seja posto em causa, a sua forma impregnou-se de tal modo no nosso espírito que somos incapazes de ir para além dessa estrutura (a é b). Decepcionados com o conteúdo, procuramos sempre e sempre novos conteúdos. Cada novo conteúdo da proposição declarativa (eu sou x, ou y, ou z...) representa um fascínio e uma decepção. Fascínio, pois a novidade descoberta irradia no espírito durante algum tempo. Mas a novidade está condenada a deixar de o ser. Aí, o espírito decepciona-se, sente-se cansado, à deriva. Sente-se preso não sabe bem a quê. A prisão, no entanto, não é outra coisa senão a forma da declaratividade.
Uma segunda razão que nos torna incapazes de nos assumirmos como questão está ligada à estrutura do próprio questionar. Este é tomado, no jogo linguístico, como o antecedente de uma resposta. Se digo "eu sou x", pressuponho nesta proposição declarativa o eco de uma questão (quem és tu?). Assim, a forma como nos habituámos a questionar está já dentro do perímetro de segurança da proposição declarativa.
Quando Merton diz que Deus nos colocou uma questão precisamos de perceber a natureza desta questão. Ela não é linguística mas ontológica. A questão que Deus me coloca não é a pergunta "quem és tu?", pertence a outra dimensão. Pelo facto de ser, eu sou já a questão. A praxis linguística tem de facto a capacidade de nos fazer extraviar. Mesmo se substituirmos questão por enigma ou mistério, o hábito conduz-nos a formular esse enigma ou esse mistério de uma forma linguística, que nos arrasta para o domínio da declaratividade.
Mas se eu sou uma questão de natureza extra-linguística, então a resposta que também sou não se pode inscrever no domínio da linguagem. É por isso que as histórias exemplares do Budismo-Zen nos parecem tão bizarras. Merton diz-nos que Deus ao chamar-nos à contemplação responde à questão que colocou. Assim sendo, a resposta à questão que sou é um fazer (uma poiesis), neste caso contemplar, e não um declarar. Este fazer não é, contudo, um mero operar subjectivo sobre as coisas exteriores ou mesmo sobre a nossa suposta natureza interior. É um fazer sem sujeito nem objecto, um puro fluir que vai da nascente para a foz, que não é outra coisa senão a nascente. Mas dizer isto é ainda estar preso na ilusão da declaratividade.
Poemas do viandante
106. SALOMÃO
aquela maré
de frio e naufrágio
ergue-se
pela manhã
cântico vesperal
no declive
que vai de um
ao outro braço
ali salomão
ergueu a tenda
e deixou vaguear
os olhos
entre seixos
e rebanhos
que apascentava
na erva do coração
aquela maré
de frio e naufrágio
ergue-se
pela manhã
cântico vesperal
no declive
que vai de um
ao outro braço
ali salomão
ergueu a tenda
e deixou vaguear
os olhos
entre seixos
e rebanhos
que apascentava
na erva do coração
sábado, 22 de maio de 2010
Poemas do viandante
105. CORAÇÃO DILATADO
a serpente raia o dia
traz um pouco
de cólera
à lavoura
que deixa a terra
sequiosa
da água a vir
nem promessa
nem engano
o coração dilatado
espera
que a porta
se abra
e possa partir
a serpente raia o dia
traz um pouco
de cólera
à lavoura
que deixa a terra
sequiosa
da água a vir
nem promessa
nem engano
o coração dilatado
espera
que a porta
se abra
e possa partir
domingo, 16 de maio de 2010
Poemas do viandante
104. VIAGEM
a viagem
onde te descubro
ao invocar o silêncio
tempestade
de rosas no pólen
da infância
a voz quebra-se
no horizonte
desce
língua de fogo
a arder no sangue
que arde
em mim
a viagem
onde te descubro
ao invocar o silêncio
tempestade
de rosas no pólen
da infância
a voz quebra-se
no horizonte
desce
língua de fogo
a arder no sangue
que arde
em mim
Segurança
O maior perigo vem da busca de segurança. Muitas vezes, na ânsia de fazer proselitismo, o que se oferece às pessoas é a ilusão da segurança, de uma segurança que acaba no outro mundo mas que começa já neste. Mas a vida está longe de ser segura e a verdade nunca trouxe segurança a ninguém. Por que razão a via haveria de ser segura?
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Tornar-se em nada
O que está na nossa mão? Nada! Mas este nada não significa nada fazer, indiferença, entrega à fatalidade. Este nada significa o tornarmo-nos no nada que somos e nessa nulidade encontramos O que é. A grande dificuldade é aceitarmos a nossa condição, reconhecermos a indigência da nossa natureza, o carácter precário das nossas pequenas verdades. Tornarmo-nos em nada não é a negação da vida, nem a afirmação do niilismo. É apenas a humilde disposição para que o Ser fale no silêncio dessa nulidade.
Poemas do viandante
103. O GRANDE RIO
uma ilha
na roda da noite
a flor ébria
esquecida
um nome
entre provérbios
e cânticos no azul
desses lábios
aí começa
a peregrinação
o mar incendiado
as escamas
que saltam
os olhos abertos
para o grande rio
de onde tudo parte
uma ilha
na roda da noite
a flor ébria
esquecida
um nome
entre provérbios
e cânticos no azul
desses lábios
aí começa
a peregrinação
o mar incendiado
as escamas
que saltam
os olhos abertos
para o grande rio
de onde tudo parte
quinta-feira, 13 de maio de 2010
A peregrinação errante
Interrogo-me muitas vezes sobre o modo como a Igreja Católica deverá falar aos homens de hoje. Refiro-me aqueles que consumaram em si o processo de modernização iniciado pela Reforma protestante e o Iluminismo. Por exemplo, o esforço de Bento XVI, uma das poucas vozes europeias que tem alguma coisa a dizer, tem sido notável, nomeadamente no campo da cultura, da arte, da filosofia, da dimensão social e política da acção dos homens. Por vezes, porém, sinto que há algo de verdadeiramente essencial que nós homens modernos aspiramos e que não encontramos na Igreja. Para além da questão da cultura e da arte, para além das questões sociais e políticas, para além mesmo das questões do rito e da teologia, é provável que a deriva em que vive o homem moderno esteja a criar um espaço para uma experiência espiritual profunda e radical.
Mais do que em outros momentos da História do Ocidente, a grande experiência do desvario, da alienação, da negação do Espírito, da dissipação da vida, tudo isso que constitui a humanidade ocidental separada já da Igreja (essa humanidade que, com Nietzsche ou na sequência deste, proclamou a morte de Deus), tudo isso, dizia, significa uma experiência desmedida de errância. Esta é o lado oculto da maioridade que os homens atingiram na sequência do Iluminismo. A errância, todavia, significa ainda peregrinação, mesmo que este peregrinar não tenha, ou ainda não tenha, um santuário onde se acolher.
Ora estes peregrinos, que não sabem que o são, são uma cada vez maior fatia das nossas sociedades, e talvez precisem de um outro tipo de linguagem, e de uma nova forma de diálogo. Talvez estejam já suficientemente maduros, embora não o pressintam nem a Igreja o compreenda, para o chamamento do Espírito. Para estes espíritos, aparentemente tão orgulhosos da sua errância, talvez o essencial não seja a questão da dogmática teológica, nem da renovação da perspectiva estética (bem necessária na Igreja, por sinal), nem do diálogo entre a Igreja e a cultura pós-moderna onde nos movemos, nem a problemática social e política (um ponto importante, na verdade). Tudo isso lhes parecerá ocioso. Melhor, tudo isso será sentido como cansativo e destituído de interesse.
Mas não estarão sequiosos que o Espírito fale para lá da Razão? Seja a razão teológica, ou estética, ou ética, ou política. Não estarão sequiosos da intranquilidade da aventura que será o encontro com aquilo que os constitui e os institui? A errância em que vivem não será já uma preparação para a intranquilidade da Via? Não precisará, por isso, a Igreja de encontrar dentro de si gente com profunda experiência e maturidade espiritual e que, a partir dessa experiência madura, possa falar com os homens de hoje, não como um pastor fala ao rebanho nem como um adulto fala a menores de idade, mas como peregrinos experientes na Via falam a outros que a procuram, mesmo que o não saibam? Não precisa a Igreja desses homens e de encontrar com eles outra linguagem?
Maturidade espiritual significará, pelo menos, duas coisas. Por um lado experiência efectiva na Via para a Verdade e para a Vida. Por outro, abandono da segurança da linguagem cristalizada e já morta que perpassa no ritual e na liturgia. Essa linguagem é, muitas vezes, pueril e contraproducente, já incapaz e impotente para conter o mistério e falar dele aos homens de hoje. Certamente que a Igreja Católica atravessa muitos e graves problemas. Mas talvez o mais grave seja o de não conseguir encontrar em si forças espirituais suficientemente maduras, criadoras e seguras para acolher os errantes e sequiosos peregrinos do mundo moderno. Peregrinos esses que muito provavelmente estarão pouco abertos para questões de dogmática e muito para experimentarem o Caminho.
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Espírito,
Igreja,
Peregrinação
Poemas do viandante
102. TRAIÇÃO
germina um canto
na solidão da noite
a imagem trazida num livro
onde recolho orações
sonhos transviados
a promessa esquecida
cavalo na estepe
o coração entrega-se
ao tempo inicial
lugar onde rememoro
cada metáfora
onde te traí
germina um canto
na solidão da noite
a imagem trazida num livro
onde recolho orações
sonhos transviados
a promessa esquecida
cavalo na estepe
o coração entrega-se
ao tempo inicial
lugar onde rememoro
cada metáfora
onde te traí
terça-feira, 11 de maio de 2010
Poemas do viandante
101. DANÇAR A POLCA
o disforme oráculo caminha
traz nas mãos a erva
do destino
duas pedras e uma rosa
que penduras no calendário
para que serve dançar a polca
a herança trazida da boémia
se a língua se prende
nas palavras que o silêncio
te sopra
o disforme oráculo caminha
traz nas mãos a erva
do destino
duas pedras e uma rosa
que penduras no calendário
para que serve dançar a polca
a herança trazida da boémia
se a língua se prende
nas palavras que o silêncio
te sopra
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Poemas do viandante
100. A NOITE
a noite cobre-se
de seda e vem
negra e esplêndida
com asas de gavião
poisa no ramo
dos teus olhos
e apaga a luz
dos meus
a noite cobre-se
de seda e vem
negra e esplêndida
com asas de gavião
poisa no ramo
dos teus olhos
e apaga a luz
dos meus
terça-feira, 4 de maio de 2010
Poemas do viandante
99. TEMPESTADE
a tempestade zinca
a cidade
abre sulcos de fogo
na planície de cinza
faz cantar as nuvens
sobre as cabeças
sonâmbulas
de quem passa
a tempestade zinca
a cidade
abre sulcos de fogo
na planície de cinza
faz cantar as nuvens
sobre as cabeças
sonâmbulas
de quem passa
sábado, 1 de maio de 2010
Poemas do viandante
98. ESPERA
a viagem
essa hora aprazada
inunda-me
de poeira
aí te espero
como num alpendre
destelhado
olhos fechados
um incêndio
prestes a florir
a viagem
essa hora aprazada
inunda-me
de poeira
aí te espero
como num alpendre
destelhado
olhos fechados
um incêndio
prestes a florir
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Poemas do viandante
97. ÁRVORES
começaram a florir
as lentas árvores da cidade
rebanho perdido
nestes dias
que maio chama
para a rápida morte
ainda nada está decidido
estendem para o céu
as pobres árvores
os ramos
dedos cansados
de tanto florir
cobertas de folhas
esperam o Outono
o frio que te há-de
despir
começaram a florir
as lentas árvores da cidade
rebanho perdido
nestes dias
que maio chama
para a rápida morte
ainda nada está decidido
estendem para o céu
as pobres árvores
os ramos
dedos cansados
de tanto florir
cobertas de folhas
esperam o Outono
o frio que te há-de
despir
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Poemas do viandante
96. FLORESTA
a floresta tardia
veste-se de
natureza caligráfica
arvora letras
sílabas indecisas
as primeiras palavras
com que o vento
então falava
a floresta tardia
veste-se de
natureza caligráfica
arvora letras
sílabas indecisas
as primeiras palavras
com que o vento
então falava
domingo, 25 de abril de 2010
Poemas do viandante
95. ESPLENDOR E CINZA
no jardim virado ao pretérito
traço a rua por onde
imóvel
caminhas
vens
sem vestes luminosas
esplendor e cinza
dos meus olhos
no jardim virado ao pretérito
traço a rua por onde
imóvel
caminhas
vens
sem vestes luminosas
esplendor e cinza
dos meus olhos
sábado, 24 de abril de 2010
Poemas do viandante
94. OS QUATRO ELEMENTOS: TERRA
montes sobre a planície
a ilha a que chamas
presente
poeira lançada sobre o muro
daquela casa
que é uma lezíria
assim tão sólida
recorda campos baldios
à espera que mendigos cheguem
e de joelhos
estendam a ferida mão
sobre a poeira da terra
montes sobre a planície
a ilha a que chamas
presente
poeira lançada sobre o muro
daquela casa
que é uma lezíria
assim tão sólida
recorda campos baldios
à espera que mendigos cheguem
e de joelhos
estendam a ferida mão
sobre a poeira da terra
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Poemas do viandante
93. OS QUATRO ELEMENTOS: ÁGUA
uma orquídea
o rumor de algum pássaro
a pele suada
à luz da tarde
deixo cair a mão
sobre a névoa do meio-dia
e afogo-me na água
onde tudo arde
uma orquídea
o rumor de algum pássaro
a pele suada
à luz da tarde
deixo cair a mão
sobre a névoa do meio-dia
e afogo-me na água
onde tudo arde
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Poemas do viandante
92. OS QUATRO ELEMENTOS: AR
nem sempre é naufrágio
o que derrota os barcos
e devolve o marinheiro a terra
nem sempre é medo
o que cala o solitário
e na escuridão o encerra
há ainda o vento
sopra onde quer
e para aqui ou ali te leva
nem sempre é naufrágio
o que derrota os barcos
e devolve o marinheiro a terra
nem sempre é medo
o que cala o solitário
e na escuridão o encerra
há ainda o vento
sopra onde quer
e para aqui ou ali te leva
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Poemas do viandante
91. OS QUATRO ELEMENTOS: FOGO
o lume arde
nesses dedos
cobertos de seda
vestidos de cambraia
o lume é uma máquina
decepa as mãos
na vindima ardente
de uma ilusão
sonhos são sedas
e cambraias a arder
nos dedos mecânicos
da decepada mão
lume
o sonâmbulo sonho
onde te escuto
sob a copa desta faia
o lume arde
nesses dedos
cobertos de seda
vestidos de cambraia
o lume é uma máquina
decepa as mãos
na vindima ardente
de uma ilusão
sonhos são sedas
e cambraias a arder
nos dedos mecânicos
da decepada mão
lume
o sonâmbulo sonho
onde te escuto
sob a copa desta faia
terça-feira, 20 de abril de 2010
Poemas do viandante
90. MÃO QUEBRADA
uma ligeira comoção
a nortada uivava
e o coração desordenado
crescia
tumor ancorado
na falência das células
nasci sob o princípio de incerteza
a mão quebrada
o toiro cantando
na solidão da arena
a tua voz ao longe a sussurrar
no desamparo de mim
uma ligeira comoção
a nortada uivava
e o coração desordenado
crescia
tumor ancorado
na falência das células
nasci sob o princípio de incerteza
a mão quebrada
o toiro cantando
na solidão da arena
a tua voz ao longe a sussurrar
no desamparo de mim
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Poemas do viandante
89. PALAVRAS
as palavras ditas
véspera das que hão-de vir
cobrem de rugas
o palácio
deixam um hálito vulcânico
sobre a mesa
um longo verão
sem pão e vinho
o rosto
pássaro pousado
na sóbria memória
chamaste-lhe morte
as palavras ditas
véspera das que hão-de vir
cobrem de rugas
o palácio
deixam um hálito vulcânico
sobre a mesa
um longo verão
sem pão e vinho
o rosto
pássaro pousado
na sóbria memória
chamaste-lhe morte
domingo, 18 de abril de 2010
Poemas do viandante
88. CANTO
um frio silêncio caiu
a pedra branca talhada
indício de fogo e gelo
o espaço feito noite
a palavra desaguada
sacudida de esperança
canto
é tudo o que resta
se a sombra de tuas mãos se vai
canto
no frio silêncio do gelo
no fogo da palavra
no espaço sem esperança
canto
e a súbita primavera ateia
de flores o velho castanheiro
um frio silêncio caiu
a pedra branca talhada
indício de fogo e gelo
o espaço feito noite
a palavra desaguada
sacudida de esperança
canto
é tudo o que resta
se a sombra de tuas mãos se vai
canto
no frio silêncio do gelo
no fogo da palavra
no espaço sem esperança
canto
e a súbita primavera ateia
de flores o velho castanheiro
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Poemas do Viandante (86)
Asher Brown Durand - Forest in the Morning Light (1855)
86. De que vale
De que vale
o refúgio
na floresta,
se a noite
morre
na luz da manhã?
Indecisa,
exígua,
rio sem margens,
a luz chega
e anoitece
o coração.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Poemas do Viandante (85)
Georgia O'keeffe - White Rose and Larkspur (1900)
85. A rosa branca
do abandono
trago-a comigo.
Dorme na noite,
relâmpago
coberto de nuvens
e vento da floresta.
Quando se abre,
a terra treme,
e um império nasce
na água do mar.
domingo, 11 de abril de 2010
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Poemas do Viandante (83)
Salvador Tuset - Anticoli (1913)
83. Junho
Junho
abre-se.
Refúgio
de luz,
ardor
de rosa,
incêndio
de matagal.
domingo, 4 de abril de 2010
Poemas do Viandante (82)
Pablo Picasso - Cabeça de Fauno (1937-1938)
82. Ausentou-se
Ausentou-se,
perdeu o limiar
e a voz ecoou
na noite desabrigada.
Ao ir pelo mundo,
o viandante rodopia
no centro da vida.
Fauno nas trevas,
anjo sobre a cidade,
a escura luz
destes versos.
sábado, 3 de abril de 2010
Poemas do Viandante (81)
Christian Bérard - The Seventh Symphony. A Bird (1938)
81. Um animal ferido
Um animal ferido
tomba
pelo chão,
entre juncos
de sombra
e ervas abertas
para a luz.
Pobre orquídea
de fogo
e penumbra,
pássaro caído
na véspera do verão.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
Páscoa e tempo
O mistério pascal, a morte e a ressurreição. Por vezes, diz-se "tempo de Páscoa", mas nunca se percebe nessa declaração a tautologia aí presente. Pensamos que há um tempo de Páscoa, outro de Natal, um de Carnaval, ou pensamos em tempos profanos, como aqueles onde, nos dias de hoje, decorre a vida dos homens. Isso ajuda-nos a falhar a compreensão da tautologia. Entre cada instante e a Páscoa cristã há uma semelhança que talvez seja pertubadora. A Páscoa dos cristãos é marcada pela morte de Cristo e a sua ressurreição. Ora esta narrativa plasmada no tempo, entre sexta-feira e domingo de madrugada, permite apreender a essência do instante temporal. Nas Confissões (IX, 14), Agostinho de Hipona, enfrenta o tempo com uma aporia: "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a perguntar, já não sei." Uma aporia é o sintoma de uma dificuldade, quando não de um mistério.
O que acontece a cada instante é uma morte e uma ressurreição. Na cruz do instantes (cruz, pois lá se cruzam passado e futuro) crucifica-se o ser que somos mas que deixamos de ser, morremos para o que fomos, que passa a ser apenas memória e passível de rememoração. Mas essa morte é a condição de possibilidade da vida que está a chegar. Morremos e ressuscitamos, instantaneamente. A Páscoa ao sacralizar esse instante de morte e ressurreição dá-lhe uma dimensão absoluta. Na mais relativa das relatividades, o instante, encontramos a dimensão do absoluto. Ao morrermos, ressuscitamos para a eternidade. Esta já está aí, embora sejamos cegos para o que está aí. A Páscoa talvez não seja mais do que um exercício de abertura dos olhos ou de focalização do olhar.
domingo, 21 de março de 2010
Poemas do Viandante (80)
Claude Monet - The Red Kerchief: Portrait of Camille Monet (1860-70)
80. Sob a sombra
Sob a sombra,
um desejo
de água,
promessa
de noite,
se demoras.
E assim fico
no vidro
da manhã,
esperando
o sono,
contando
as horas.
terça-feira, 9 de março de 2010
Poemas do Viandante (79)
George Inness - Twilight (1860)
79. Veio o crepúsculo
Veio o crepúsculo
no dorso da tarde
e pediu pão e vinho.
Saciado, levantou-se,
ergueu os olhos
para a noite
e, como uma rosa,
em silêncio se despediu.
segunda-feira, 8 de março de 2010
Poemas do Viandante (78)
Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)
78. Das nuvens
Das nuvens,
o silêncio
do entardecer.
Tão húmido
e tão frio,
desliza na voz
que o vai trazer.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Poemas do Viandante (77)
77. Penumbra
Penumbra
de silêncio
e fogo.
Alegria
de sombra,
um cavalo
de sangue.
A voz
que oiço
e logo calo.
Penumbra
de silêncio
e fogo.
Alegria
de sombra,
um cavalo
de sangue.
A voz
que oiço
e logo calo.
sábado, 20 de fevereiro de 2010
Poemas do Viandante (76)
76. Despes as palavras
Despes as palavras.
Em cada sílaba
sopra o vento.
E tudo flutua,
a dor ao relento,
ou a seda rasgada
que te deixa branca,
leve e nua.
Despes as palavras.
Em cada sílaba
sopra o vento.
E tudo flutua,
a dor ao relento,
ou a seda rasgada
que te deixa branca,
leve e nua.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Poemas do Viandante (75)
75. Um império
Um império
de ervas e
tormentos,
um fulgor
de sedas,
um anjo
que desliza
e trémulo
voa na praia
do esquecimento.
Um império
de ervas e
tormentos,
um fulgor
de sedas,
um anjo
que desliza
e trémulo
voa na praia
do esquecimento.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Poemas do Viandante (74)
74. Os dias
Os dias
onde tudo era
água.
Uma rosa
abria-se
no quintal
e a dor crescia
vinda
no vendaval.
Os dias
onde tudo era
água.
Uma rosa
abria-se
no quintal
e a dor crescia
vinda
no vendaval.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Poemas do Viandante (73)
73. Uma erva baloiça
Uma erva
baloiça
sob a luz
do vento.
Vai e vem,
leve
se arqueia,
e ao tocar a terra
ergue-se
para o firmamento.
sob a luz
do vento.
Vai e vem,
leve
se arqueia,
e ao tocar a terra
ergue-se
para o firmamento.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Poemas do Viandante (72)
72. Sem rosto ou idade
Sem rosto ou idade,
sem luz na colina,
repouso na melancolia
e espero a sombra
que do poente
leva ao meio-dia.
domingo, 24 de janeiro de 2010
Propriedades
Chegar ao momento da verdade, àquela hora em que o ser e o compreender coincidem. O que sou eu? Nada, puro nada. Tudo o que trago não me pertence, tudo o que ostento foi roubado, tudo o que proclamo, plagiado. Mas será que compreendo tudo isso? Não, não compreendo. Todos dizemos coisas que não compreendemos. Quando o compreender, poderei dizer que tenho tudo e que sou o Rei do mundo. Agora, não passo de um pobre súbdito ajoujado ao peso das suas inúteis posses.
Poemas do Viandante (71)
71. No
desejo da mão
No
desejo da mão,
a voz da alegria.
a voz da alegria.
E um grito ilumina
o que fica de cada dia.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Poemas do Viandante (70)
70. UM PUNHAL RASGA A NOITE
Ave de sombra,
Um punhal rasga a noite
e canta em silêncio.
e canta em silêncio.
Ave de sombra,
pássaro de seda,
luz na boca que fala.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Poemas do Viandante (69)
69. SOMBRA E CLARÃO
Sombra e clarão,
sulco de pedra,
lâmpada
onde ilumino o coração.
Sombra e clarão,
sulco de pedra,
lâmpada
onde ilumino o coração.
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