sábado, 9 de março de 2013

Autenticidade e justificação

Eugène Leroy - Adão e Eva (1968)

Naquele tempo, Jesus disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: «Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: 'Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.' O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: 'Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.' Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.» (Lucas 18,9-14) [Comentário de Teresinha do Menino Jesus aqui]


A parábola enquadra-se numa dialéctica corrente dos discursos de Cristo, a dialéctica exaltação / humilhação. Esta dialéctica é um dos tópicos essenciais e, por isso, um dos que merece uma maior atenção e meditação. Deixemo-la, porém, para outra ocasião e concentremo-nos no núcleo do texto de Lucas. Quem voltará, da oração, justificado para sua casa? Valerá a pena perceber como se chega, na história lexical, ao termo justificado. A palavra portuguesa é a tradução da latina iustificatus, a qual traduz, do texto grego recebido, δεδικαιωμένος (do verbo δικαιóω). A palavra portuguesa tem uma carga semântica que necessita de esclarecimento.

Justificar significa apresentar o motivo ou a razão de um dado comportamento ou proposição. É uma estratégia de fundamentação e, ao mesmo tempo, de explicação. Significa, também, legitimar e, ainda, desculpar. Esta carga semântica complexa não deve ser deixada de lado pela opção de justificado como desculpado ou perdoado. Retome-se o vocábulo grego δεδικαιóωμένος. O que nos ensina ele? Ensina que justificar é tornar justo ou inocente, mas também livre. A humilhação do cobrador de impostos libertou-o, tornou-o justo, permitiu-lhe uma segunda inocência. A sua conduta errante, de pecador, não está legitimada, como se pode pensar a partir do uso da expressão portuguesa. Ela é ilegítima e é dessa ilegitimidade que ele é libertado e tornado inocente.

A oração do cobrador de impostos pode ainda ligar-se a uma ideia presente no vocábulo português justificado. Que diz ele? Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Pede piedade e reconhece o fundamento, aquilo que explica, a sua conduta ilegítima. Um reconhecimento não meramente ético e moral mas também ontológico, um mostrar que tem consciência da sua própria fragilidade, da sua natureza falível, bem ao contrário da consciência farisaica. Este reconhecimento é um momento de manifestação da verdade: sou um homem frágil e falível, por isso clamo piedade. Esta verdade objectiva – a da falibilidade do homem – quando é reconhecida pela própria consciência torna-se autenticidade, e é esta que merece a justificação, o devir justo, a libertação e o tornar-se inocente.

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