quinta-feira, 28 de março de 2013

A intenção pura

Carlos Schwartz - Purificación (1998)

Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo. O diabo já tinha metido no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, a decisão de o entregar. Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. Chegou, pois, a Simão Pedro. Este disse-lhe: «Senhor, Tu é que me lavas os pés?» Jesus respondeu-lhe: «O que Eu estou a fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.» Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus: «Se Eu não te lavar, nada terás a haver comigo.» Disse-lhe, então, Simão Pedro: «Ó Senhor! Não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» Respondeu-lhe Jesus: «Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo. E vós estais limpos, mas não todos.» Ele bem sabia quem o ia entregar; por isso é que lhe disse: 'Nem todos estais limpos'. Depois de lhes ter lavado os pés e de ter posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me 'o Mestre' e 'o Senhor', e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. (João 13,1-15) [Comentário de Teresa de Lisieux aqui]

No texto de João cruzam-se, de forma inopinada, duas acções rituais, a ceia e o lava-pés. Pode-se pensar a ceia pascal como simbolizando um ritual de reforço da vida comunitária (embora a simbólica que lhe está associada é de tal maneira poderosa que o seu significado é inesgotável) e o lava-pés como um ritual de purificação, uma purificação que se inscreve já no âmbito de uma purificação anterior (Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo), talvez o baptismo.

Três indicações parecem claras. A persistência de uma comunidade está ligada a uma conduta de purificação contínua. Em segundo lugar, o ritual purificador estabelece uma interacção entre o que purifica e aquele que é purificado. Ninguém se purifica a si mesmo, mas é purificado pelo Outro. Por fim, assistimos a uma subversão da ordem hierárquica presente na comunidade.

A comunidade em causa não é uma comunidade política, embora se inscreva nela. Os textos evangélicos estão cheios de referência à presença obsidiante de uma comunidade mais alargada que a comunidade constituída pelo Mestre e pelos discípulos. Isto não significa que se esteja perante uma contra-comunidade ou uma comunidade alternativa. Significa que a comunidade instituída por Cristo se inscreve na outra como o ideal dessa própria comunidade, como símbolo de uma comunidade justa que vive segundo a verdade.

Esta comunidade que é pela sua realidade símbolo ideal de qualquer comunidade humana exige, no seu compromisso com a justiça moral e a verdade, um processo contínuo de purificação. A justiça e a verdade só se tornam acessíveis pela purificação da intenção. O que é surpreendente é que a intenção pura não é dada a priori, mas resulta de um processo de interacção entre o homem e Deus, na pessoa de Cristo. Não sou eu que me purifico, mas o Cristo que há em mim ou que está presente na comunidade.

Purificar é um serviço que o mais elevado, o que é puro, presta aos homens e, por isso, é Cristo que lava os pés aos discípulos e não o contrário. A hierarquia humana é subvertida por Cristo. O mais elevado serve os menos elevados. O Mestre e Senhor veio para servir, para que os homens fossem purificados da errância que é estar no mundo sujeito às vicissitudes da existência empírica. Curiosamente, esta subversão da normal hierarquia humana tem por finalidade instituir na comunidade uma igualdade entre os seus membros: Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. O poder purificador é transmitido à comunidade na figura do outro. São os outros que me tornam puro e esse é o seu serviço, bem como o meu é purificar os outros. A purificação da intenção de cada um reside na sua capacidade de descentramento e de escuta. Não há intenção pura no solipsismo ou na afirmação narcísica da sua suposta pureza.
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Com o comentário de hoje termina a aventura, pois foi uma verdadeira aventura, de comentar os textos evangélicos propostos pela tradição católica para cada dia da Quaresma, a qual termina também hoje. Como se disse (aqui), os comentários não se inscrevem nem no campo da liturgia nem da teologia, áreas para as quais o comentador não tem qualquer competência. Os comentários inscrevem-se numa leitura espiritual e filosófica de textos capitais da cultura ocidental, numa tentativa de os retirar da recepção habitual, que os foi banalizando e trivializando, e de apreender o espírito que neles sopra e o escândalo que eles, ainda hoje, poderiam provocar. Escândalo para a razão e não para a vida social, pois esta tornou-se estranha aos textos. Estranheza proveniente tanto da indiferença como de certa recepção religiosa que os banaliza e trivializa ao ponto deles, com a sua enorme potência escandalizadora, não provocarem já – falo em termos gerais e não em casos particulares – quaisquer sobressaltos na consciência. Aconteceu com estes textos o mesmo que, segundo a estética de Walter Benjamin, aconteceu com as obras de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, perderam a aura. Estes comentários foram uma tentativa – por parte do comentador – de recuperação – pelo menos, para si – dessa aura perdida.

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