Wassily Kandinsky - A vida multicolor (1907)
Naquele tempo, disse Jesus aos
seus discípulos: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim
revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: Até que
passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que
tudo se cumpra. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e
ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os
praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. (Mateus 5,17-19) [Comentário de Bento
XVI aqui]
Poder-se-á perguntar que perfeição é essa que o cristianismo traz à
lei mosaica e aos Profetas. A resposta mais evidente diz-nos que a misericórdia
e o amor ao próximo são as perfeições que tornam a lei mais adequada aos
homens. Isso é verdade, mas o texto deixa perceber uma tensão já várias vezes
detectada nas leituras que estão a ser feitas. A lei é composta por
mandamentos, ordens, proibições. Sendo assim, ela é compreendida como algo
exterior ao sujeito, como uma imposição que lhe vem de for. A tensão que está
em causa é entre a lei e a vida, entre o exterior e o interior.
A lei com o seu cortejo de obrigações e proibições choca com a
espontaneidade da vida. Esta espontaneidade é vista como aquilo que precisa de
ser domado. A lei é esse exercício de domesticação de uma vida transbordante,
onde os impulsos dionisíacos se fazem sentir, ameaçando a comunidade e os
indivíduos de dissolução. A severidade do código mostra-nos bem a potência da
vida e o fulgor dos impulsos que havia que domar. A exterioridade da lei,
contudo, gerava o formalismo farisaico e o sentimento de estranheza perante
essa obrigação imposta de cima e de fora.
A perfeição trazida por Cristo refere-se ao rasgar do véu da
interioridade para tornar patente aquilo que os impulsos e os desejos
ocultavam. No fundo do homem, reside também o amor e a misericórdia, há uma
bondade que se deve manifestar enquanto vida. Não se trata de uma invenção
exterior, mas de um trazer à luz aquilo que também faz parte da natureza humana,
e que as múltiplas figuras da alienação continuamente obscureciam. A perfeição
trazida é uma revelação, mas uma revelação do que já estava aí. Com a vinda de Cristo
trata-se de viver isso que estava oculto, trata-se, como diz o texto, de
praticar e de ensinar. A lei não é abolida, mas a vida encontra um caminho que,
sendo vivido, dispensa a vigilância exterior da lei.
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