Pablo Picasso - Contemplación (1904)
Seis dias antes da Páscoa, Jesus
foi a Betânia, onde vivia Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Ofereceram-lhe
lá um jantar. Marta servia e Lázaro era um dos que estavam com Ele à mesa. Então,
Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto
preço, e enxugou-lhos com os seus cabelos. A casa encheu-se com a fragrância do
perfume. Nessa altura disse um dos discípulos, Judas Iscariotes, aquele que
havia de o entregar: «Porque é que não se vendeu este perfume por trezentos
denários, para os dar aos pobres?» Ele, porém, disse isto, não porque se
preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa do
dinheiro, tirava o que nela se deitava. Então, Jesus disse: «Deixa que ela o
tenha guardado para o dia da minha sepultura! De facto, os pobres sempre os
tendes convosco, mas a mim não me tendes sempre.» Um grande número de judeus,
ao saber que Ele estava ali, vieram, não só por causa de Jesus, mas também para
verem Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Os sumos sacerdotes
decidiram dar a morte também a Lázaro, porque muitos judeus, por causa dele, os
abandonavam e passavam a crer em Jesus. (João 12,1-11) [Comentário de João Paulo II aqui]
De facto, os pobres sempre os
tendes convosco, mas a mim não me tendes sempre. O texto de João expõe a
ordenação dos modos de vida. A preocupação com os pobres simboliza a vida
activa, o compromisso com os outros, a dinâmica da dádiva e do cuidado, mas também o estar envolvido na interacção social, fazer parte desse jogo. A actividade de Maria é o símbolo da
contemplação, onde a o foco da atenção se desloca do outro para o Outro que
reside no fundo de cada um. A hierarquia, por surpreendente que seja para o
homem moderno, é muito clara. A contemplação – essa inútil actividade do
espírito, segundo a lógica activista de Judas Iscariotes ou da ideologia
contemporânea – vem em primeiro lugar e tem primazia relativamente à dinâmica de intervenção social.
Uma interpretação sociológica do texto, fundada no sentido literal,
faria de Cristo o profeta da eterna pobreza. Não que a história tenha infirmado
a literalidade das suas palavras. Na verdade, em nenhum momento da história a pobreza deixou de
assediar os seres humanos. Vale a pena, por isso, determo-nos na palavra grega
usada, πτωχοὺς, e compreender o seu campo semântico. Por certo, significa
mendigo, pedinte, pobre. Contudo, o vocábulo grego remete para uma descrição
fenomenológico dessa mendicância. Esta é figurada por uma posição de
retraimento, de alguém que se agacha e encolhe de medo. O pobre (πτωχοὺς) é uma
figura da interacção social, o que deixa de imediato subentendido que é esta
interacção que o produz e o coloca na representação descrita.
Pobres sempre os tendes, não
é apenas uma constatação de facto, mas um aviso. A questão essencial não se
encontra no entrar no jogo da interacção social (vender o perfume e dar o
dinheiro aos pobres), pois isso seria reproduzir os pobres, entrar no mesmo
jogo que produz a pobreza e faz com que alguns – talvez muitos – homens se apresentem
diminuídos perante os outros. Mais importante é o encontro com a Verdade, o
encontro consigo mesmo na contemplação do Cristo, daquele que nem sempre temos
perante nós. E é só este encontro com a Verdade que permite salvar a acção do
jogo mundano produtor de pobreza. Esta tanto pode ser a do mendigo que se
agacha e humilha perante o homem rico, como a pobreza de cada um de nós perante
a multiplicidade das coisas do mundo que nos atraem e nos obrigam a agachar e
encolher perante elas ou a sua ausência.
Nas palavras de Cristo não há qualquer ilusão sobre a sociedade e o
activismo cego. Também não há qualquer negação da acção, mas há uma clara
indicação tanto da hierarquia entre contemplação e acção como do papel da
contemplação na limitação dos riscos de reprodução da injustiça que toda a
acção parece conter em si mesma.
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