Maria Helena Vieira Da Silva - Liberdade (1973)
Naquela tempo, disse Jesus aos
judeus: «Meu Pai trabalha intensamente, e Eu também trabalho em todo o tempo.» Perante
isto, mais vontade tinham os judeus de o matar, pois não só anulava o Sábado,
mas até chamava a Deus seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus. Jesus
tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes: «Em verdade, em verdade vos
digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai,
pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho. De facto, o Pai ama o
Filho e mostra-lhe tudo o que Ele mesmo faz; e há-de mostrar-lhe obras maiores
do que estas, de modo que ficareis assombrados. Pois, assim como o Pai
ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que quer.
O Pai, aliás, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento, para
que todos honrem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o
Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e
crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas
passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo: chega a hora e é
já em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem
viverão, pois, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho o
poder de ter a vida em si mesmo; e deu-lhe o poder de fazer o julgamento,
porque Ele é Filho do Homem. Não vos assombreis com isto: é chegada a hora em
que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz, e sairão: os que
tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida; e os que tiverem
praticado o mal, para uma ressurreição de condenação. Por mim mesmo, Eu não
posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo,
porque não busco a minha vontade, mas a daquele que me enviou.» (João 5,17-30) [Comentário de Agostinho
de Hipona aqui]
Duas portas para entrar no texto de João, o trabalho e a palavra. O
trabalho do Pai e do Filho remete para uma ideia de dinâmica e de produção de
obras. Isto permite perceber uma concepção do divino muito diferente de outras
tradições onde Deus é pensado como estando afastado dos homens. A ideia
aristotélica de Deus como motor imóvel é aqui superada pela ideia de trabalho
mas também de compromisso que se exprime no vocábulo grego εργάζεται (ver aqui). O Pai trabalha
continuamente e compromete-se também continuamente. Há assim uma dinâmica do
compromisso, a qual constitui o modelo para o próprio Filho.
Este operar contínuo e este compromisso
manifestam-se na palavra. O apelo que é feito aos homens é que escutem a
palavra que lhes fala da dinâmica do compromisso de Deus para com eles. Se esta
dinâmica não tem sábado, a que lhe deveria responder, por parte dos homens, também não. A disciplina
da escuta não distingue o dia santo dos outros dias, pois todos os dias são
santos, já que em todos eles a dinâmica do compromisso se efectiva.
É esta efectiva operatividade, mediada pela palavra,
que não só cura os paralíticos como ressuscita os mortos, aqueles que estão
encerrados no túmulo. O morto é apenas uma intensificação do estado de alienação
simbolizado pelo paralítico do texto de ontem. Se se considerar a tradição
platónica, o corpo é visto como o túmulo onde está encerrada a alma, onde ela
se encontra alienada. Mas esta tradição materializa demasiado essa ideia de alienação.
Mais do que o corpo, o túmulo é as múltiplas formas como a alma se perde na errância,
na distracção, naquilo que a prende ao que é transitório. O dinamismo
operatório do Pai, imitado pela acção do Filho e anunciado pela Sua palavra, é
o caminho de libertação e emancipação dessa escravatura imposto pelo prazer do efémero. O compromisso do Pai é
o da libertação e emancipação dos filhos.
Ainda bem que esperei por hoje para comentar...
ResponderEliminarToda a vida do Cristão deve passar por um compromisso com os caminhos de Deus, a fazer a sua obra, seja nas próprias acções na sua vivência diária, seja nas obras das quais se faça parte, pelo beneficio da comunidade e todo o proximo em geral.
A Palavra não é um guião, mas mais um guia, no fundo um mapa com sugestões de como atingir a plena vida neste mundo exigente e tentador. A tentação de nos encerrarmos em nós proprios (ficar "paralisado", como demonstrado no texto de ontem) é grande, mas temos todas as ferramentas necessárias na Palavra para fazer frente a essa tentação, e a única coisa que que nos é exigido dar em troca é fazer chegar essas mesmas ferramentas ao proximo, através de um "operar contínuo e este compromisso"
A dinâmica humana como resposta ao dinamismo divino, mediada pelo operar do Verbo. A palavra compromisso tem um interessante significado, que é aqui completamente adequado: o prometer conjuntamente, como se um compromisso fosse sempre o de duas partes que se prometem uma à outra, se comprometem.
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