Salvador Dali - A persistência da memória (1931)
Naquele tempo, um dos Doze,
chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto
me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E,
a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No
primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e
perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?»
Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre
manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a
Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara
e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto
comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente
entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura
serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me
entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele;
mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para
esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou:
«Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus
26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]
Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui
e aqui.
Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o
estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e
dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que
quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo
deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.
As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o
texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível
não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa
com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não
seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do
mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão
“o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o
leva a abrir a porta para que seja aí
realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha?
Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?
Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que
pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos
e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um
tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o
tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um
determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se
inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da
dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.
Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve
na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence
ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba
por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente
é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização
acabará por reportar os acontecimentos históricos.
Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a
identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra
grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se
especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio
à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a
questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha?
Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome
de cada um de nós.
Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa
será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante –
que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora
aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta:
abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja
consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até
trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.
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