sexta-feira, 13 de julho de 2012

Poemas do Viandante (298)

João Queiroz - Sem título (2005-6)

298. AS ESTRADAS COBERTAS DE GELO

as estradas cobertas de gelo
e uma intempérie sobre a rocha escarpada
passava os dias a observar a montanha
a desenhar rastos e trilhos
o longo caminho que leva ao precipício

um vulto vinha pela luz da manhã
caminhava por senda de terra batida
sob a estreita misericórdia do céu
não trazia flores nos braços ou pássaros no ombro
nem palavras que sossegassem corações
a luz a cada passo fazia-o mais e mais vulto
e a sua densidade crescia contra a sombra da floresta
primeiro era folha e ramos
logo madeira e agora uma estátua de pedra

um uivo ressoou para lá da planície
e tudo em mim se abriu para os teus olhos
e eles vieram na volúpia da viagem
oscilaram e sentaram-se no peito aberto
cantavam nesta praça desvalida de flores
uma ária antiga perdida no júbilo da madrugada

sedimentos de rocha e restos de folhas secas
o basalto e o granito e o calcário
e voltava sempre e sempre às enumerações
uma esperança de compor o mundo
e abrir uma janela na paisagem
a pequena fresta para o outro lado
aquele que não tem norte nem horizonte
nem caminho que leve
ou abrigo onde o salteador se esconda

olho para a fotografia pousada sobre a mesa
e tudo se inclina na seca garganta da memória

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