João Queiroz - Sem título (?)
296. A ESTREITA PASSAGEM PARA O LADO DA NOITE
a estreita
passagem para o lado da noite
um caminho
estelar aberto e lento
tudo o que
peito pode ainda albergar
o peso
desmedido da candura na alma
e um rasto
de luz e sombra no espírito
houve
invernos em que o amor servia o corpo
trazia-lhe
conforto e um pouco de calor
acompanhava-o
se pela manhã cantava
houve
invernos em que o amor trazia a solidão
um exercício
frágil na esquina dos dias
a porta que
se fechava e o mundo desaparecia
pego nas
tuas mãos e não espero nada
o dia nasceu
cinzento e a cidade calou-se
ao longe escuta-se
o zumbido dos campos
o ronco
matinal das árvores ao florescer
e se havia
uma pedra no olhar
ou o júbilo
de antes descia pela memória
era o
coração a vociferar na tempestade
a luz cerúlea
a pedir estrelas na manhã
uma promessa
de vida aberta sobre a loucura
por vezes
pego numa palavra e olho-a
ela resiste
e depois entrega-se mansamente
abre o
coração de cada sílaba
e deixa que
eu espreite os campos secretos
onde a
azáfama de gerações depositaram detritos
restos
inúteis com os quais construo o sentido
um
dicionário de sentimentos
e uma
ontologia lexical para uso privado
liberto da
tradição o meu ser estremece
e falo alto
nas ruas da cidade
e não há
quem não me julgue estrangeiro
perdido na
saudade e incendiado de álcool
de tudo o
que compreendi
ainda são as
tuas mãos o que mais amo
pequenas passagens
abertas para o poente
instrumentos
de precisão para o prazer tardio
o fio que me
liga à terra do passado
havia um
pequeno e pobre jardim
caminhos de
terra e canteiros murados a tijolo
vasos para
as plantas secarem no verão
trago tudo
isso no bolso da memória
pesa e
verga-me para o chão
mas eu canto
o prodígio desse silêncio
e olho para passado
com o desejo da aurora
a estreita
passagem levava-me a uma terra de rosas
saibro batido
pela inclemência das gerações
o exercício
torpe de esquecer a herança
a pobre
estirpe sem prodígio ou ouro
que me trouxe
o barro para as paredes desta casa
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