quinta-feira, 12 de julho de 2012

Poemas do Viandante (297)

João Queiroz - Sem título (?) (1998)

297. AS PRIMEIRAS FOLHAS TRAZIDAS PELA ÁGUA

as primeiras folhas trazidas pela água
um rasto de desolação no calor da tarde
e toda a história da paixão contida nestas páginas
o fragor com que ruem as últimas memórias
lembra multidões exaltadas tomadas pela cólera
intempérie ardente vestida no desmando do mundo

retomo sempre o mesmo verso
não interessa as palavras com que se oculta
a máscara negra cingida sobre a face
tento segurá-lo ao papel e prendê-lo
e ele escapa uma e outra vez
torna-se uma paisagem bravia
ou uma ruela mal iluminada na noite

a velocidade escasseia no ritmo da minha mão
e o verso esconde-se numa vibração de metal

a geometria desta cidade confunde-me
ruas oblíquas e curvas tortuosas enxameiam o coração
rasgam o território entre a espessura das moradias
morrem num daqueles becos sem saída
assim vivi a navegar por cidades desconcertadas
tomei-lhes o pulso e respirei o ar poluído
ao sentar-me nos escassos bancos de jardim

por vezes a cidade queria ser um verso
e cresciam poemas inúteis feitos em desalinho
uma chuva ácida sobreposta ao terror da paisagem
a dinastia dispersa pelas avenidas

as margens estão infectadas de ervas
copos de plástico e garrafas partidas
ali sentado vejo o correr das águas
e os barcos que deslizam no horizonte
cansei-me da melancolia
e aguardo que o silêncio chame por mim

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