João Queiroz - Sem título (1998)
293. ERA APENAS UM ESBOÇO NA PAISAGEM
era apenas
um esboço na paisagem
a promessa
de uma árvore
o símbolo
solar do desassossego que cresce
toma conta
do mundo
distribui os
dias pelas semanas
e recolhe-os
no pátio do esquecimento
amei a deus
sobre todas as coisas
e agora
estou nu
caminho pela
noite sôfrego e impotente
e conto as
horas sobre a cilada do amor
o
desperdício da vida nunca é demais
a natureza
traz um imperativo
e cada corpo
entrega-se à ordem
que emana do
vórtice
chegada
a hora em que tudo começa
desço
lentamente amparado ao muro
sinto o
calcário no sangue das mãos
o medo que
se expande em mim
e rezo para
que o instinto não me traia
neste
horizonte de escombros
matéria
inerte à espera da respiração
o divino
odor inalado com vagar
breves
inspirações
e longas
pausas para oxigenar o coração
não sei do
que falas se dizes a lei da natureza
talvez seja
um traço de adrenalina
aquela dor
que abre o ventre
a busca
desesperada da terra
não sei nada
de leis nem da natureza
como as
maçãs que a terra dá
e oiço
cantar as raparigas
puras e
cândidas na traição armadilhada
talvez seja
esse o imperativo da maternidade
o desaguar
do ser no lago do mundo
a casa
branca rasgada no azul do céu
nada sei da
natureza e da sua lei
da repetição
infinita do gesto
a pedra que
cai ao ritmo das marés
quantos anos
tens perguntaste-me
e eu
contei-te a minha vida
fui educado
no amor da precisão
o esquadro e
a régua
o trabalhar
lento do compasso
esses
exercícios matinais
a delituosa
prevenção do mal
deixei de
esboçar paisagens
os corvos
vinham e comiam-nas pela manhã
e tudo
ficava tão vazio
que ouvia
deus chorar
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