domingo, 8 de julho de 2012

Poemas do Viandante (293)

João Queiroz - Sem título (1998)

293. ERA APENAS UM ESBOÇO NA PAISAGEM

era apenas um esboço na paisagem
a promessa de uma árvore
o símbolo solar do desassossego que cresce
toma conta do mundo
distribui os dias pelas semanas
e recolhe-os no pátio do esquecimento

amei a deus sobre todas as coisas
e agora estou nu
caminho pela noite sôfrego e impotente
e conto as horas sobre a cilada do amor

o desperdício da vida nunca é demais
a natureza traz um imperativo
e cada corpo entrega-se à ordem
que emana do vórtice
chegada a hora em que tudo começa

desço lentamente amparado ao muro
sinto o calcário no sangue das mãos
o medo que se expande em mim
e rezo para que o instinto não me traia
neste horizonte de escombros
matéria inerte à espera da respiração
o divino odor inalado com vagar
breves inspirações
e longas pausas para oxigenar o coração

não sei do que falas se dizes a lei da natureza
talvez seja um traço de adrenalina
aquela dor que abre o ventre
a busca desesperada da terra
não sei nada de leis nem da natureza
como as maçãs que a terra dá
e oiço cantar as raparigas
puras e cândidas na traição armadilhada

talvez seja esse o imperativo da maternidade
o desaguar do ser no lago do mundo
a casa branca rasgada no azul do céu
nada sei da natureza e da sua lei
da repetição infinita do gesto
a pedra que cai ao ritmo das marés

quantos anos tens perguntaste-me
e eu contei-te a minha vida
fui educado no amor da precisão
o esquadro e a régua
o trabalhar lento do compasso
esses exercícios matinais
a delituosa prevenção do mal

deixei de esboçar paisagens
os corvos vinham e comiam-nas pela manhã
e tudo ficava tão vazio
que ouvia deus chorar

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