terça-feira, 3 de julho de 2012

Poemas do Viandante (288)

João Queiroz - Sem título (2008/9)

288. VENHO DO TEMPO AVARO DA POBREZA

venho do tempo avaro da pobreza
dos dias em que a míngua descia sobre as cabeças
entrava nas casas para traçar o vazio
uma onda fria de ausência
o medo desmedido da eternidade

se havia um excesso de sentimento não o sei
apenas a desolação crescia
desenhava uma angústia febril nas paredes
e a melancolia segmentava-se
um rasto de carvão e jornais rasgados
os homens que passavam de bicicleta

estou sentado ao vento da noite
e a serra d’aire brilha ao longe
um vulto negro e incerto
a promessa de abandono e limpidez
no rosto sofrido com que amavas os dias

recupero a tua memória perdida
eram os dias da grande guerra
e os soldados marchavam incautos
presos a um destino surdo
à ração esquiva da morte em combate

uma paliçada de canas dividia o mundo
e um génio falava do outro lado
a almotolia do azeite
e as primeiras flores do coração

nuvens de poeira e restos de palha
um afogado perdido nas águas do tejo
a primeira morfologia das constelações
sobre tudo isso veio o esquecimento
e traçou um plano de combate
armadilhou a terra bravia da memória
e roubou ao inimigo cada recordação

o talento da crueldade nasce nessa moradia
é um exercício lento de combustão
uma suspeita nunca confirmada de amargura
as mãos sujas pelo crime prosperam na madrugada
são brancas e trazem na lividez a faca
com que cortam o fio que te liga à vida

uma ave voa no tumulto dos céus
estrelas solitárias dormem em alvoroço
e na terra ouvem-se os primeiros trovões
a descarga eléctrica na torre da igreja

qual seria o teu ofício ainda não o sei
recordo-me que vinhas de longe
e sentavas-te ao entardecer
para contar essas estranhas histórias
que me povoam a infância
a terra coberta de erva canária
os primeiros regatos trazidos pela invernia

sobre o presépio um céu azul e estrelado
e nunca mais houve natal que não fosse esse natal
um deus pequeno e sujo entre palhas
o rumor de gente a entrar pela porta
e um anjo sentado no musgo
apascentava breves rebanhos perdidos na terra

dobrado o cabo da boa esperança
e as tormentas domadas pela arte de navegar
espero pela manhã com o rosto preso na almofada
e o barulho das parras batidas pelo vento
o corpo a arder no desejo do teu

desenho um mapa para me orientar
e deixo sinais de obediência
ajoelho-me silencioso perante o altar
e espero que deus fale
e traga ao meu coração o primitivo ardor
a incandescência com que te abria o corpo
e sentia em cada célula
o odor suave do teu sangue de fêmea
a tecelagem primitiva com que me envolvias
no círculo desenhado pelas ancas
a música que crescia no palco
um incêndio na seiva das árvores
o grito estrangulado no peito
quando dizias fala para mim
ainda tenho a graça da juventude
o sexo molhado à espera do teu
na fímbria onde o desejo se abre
e se abate como uma nuvem negra
sobre os telhados de zinco da cidade

venho do tempo avaro em que amava a pobreza
os dias em que encostado ao poço
comia laranjas se era delas o tempo
e tudo era a simplicidade de ser
pequenas promessas levedadas em segredo
o rasto de poeira antes da cidade

levo no bolso a penúria desses dias
e amo-a na pureza com que ela me devolvia
cada coisa que eu dava a quem a pedia

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