João Queiroz - Sem título (2005)
295. O SENTIMENTO COM QUE DESENHAS A VIDA
o sentimento
com que desenhas a vida
abre-se na
noite para um duelo sem razão
vem ulcerado
e um odor impuro mancha o céu
tudo se
expande na flacidez do espaço
breves
clarões incidem sobre o corpo
iluminam
pequenas cicatrizes a rouquidão da voz
recomeço a
meditação sobre a origem do mal
e conto as
horas perdidas no sonho
as flores
puras e brancas trazidas nos braços
a pérgula
esquecida onde passeávamos no verão
a fome nesses
dias de sagrada pobreza
a castidade
ameaçada pelo devaneio
procissões
de raparigas fechadas para o sacrifício
e na fenda viciosa
da terra nasciam sedições
exercícios
de fogo e água
o breve
arquipélago da memória em ebulição
cheguei à
cidade trazido da cidade
e o
horizonte era um mar de janelas e telhados
as linhas do
eléctrico a brilhar ao sol
e um resto
de janeiro transfigurado em primavera
tão
descritivo é o teu sentimento
disseste e
afagaste o animal deitado por terra
fiquei à
espera das palavras que haveria
enquanto o
sol se avermelhava e morria no oceano
e tudo caminhava
para a serenidade monstruosa
com que os
teus dedos exigiam o meu amor
descrevo o
gelo que me paralisa a respiração
e oiço a
malícia sobre as ruas magoadas pela noite
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