terça-feira, 10 de julho de 2012

Poemas do Viandante (295)

João Queiroz - Sem título (2005)

295. O SENTIMENTO COM QUE DESENHAS A VIDA

o sentimento com que desenhas a vida
abre-se na noite para um duelo sem razão
vem ulcerado e um odor impuro mancha o céu
tudo se expande na flacidez do espaço
breves clarões incidem sobre o corpo
iluminam pequenas cicatrizes a rouquidão da voz

recomeço a meditação sobre a origem do mal
e conto as horas perdidas no sonho
as flores puras e brancas trazidas nos braços
a pérgula esquecida onde passeávamos no verão

a fome nesses dias de sagrada pobreza
a castidade ameaçada pelo devaneio
procissões de raparigas fechadas para o sacrifício
e na fenda viciosa da terra nasciam sedições
exercícios de fogo e água
o breve arquipélago da memória em ebulição

cheguei à cidade trazido da cidade
e o horizonte era um mar de janelas e telhados
as linhas do eléctrico a brilhar ao sol
e um resto de janeiro transfigurado em primavera

tão descritivo é o teu sentimento
disseste e afagaste o animal deitado por terra
fiquei à espera das palavras que haveria
enquanto o sol se avermelhava e morria no oceano
e tudo caminhava para a serenidade monstruosa
com que os teus dedos exigiam o meu amor

descrevo o gelo que me paralisa a respiração
e oiço a malícia sobre as ruas magoadas pela noite

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