João Queiroz - Sem título (?) (1998)
285. EIS A ILHA MISTERIOSA ONDE ESCONDES O TESOURO
eis a ilha misteriosa onde escondes o tesouro
ao atravessá-la um nó apodera-se da garganta
abre-se terrível o universo em expansão
galáxias e desejos e poeiras cósmicas
tudo conflui para o centro da pequena vila
uma terra muralhada destruída pelo terramoto
as águas plácidas do rio sob a inclemência de julho
pego nas mãos das mulheres que amei
e sigo a sombra na calçada polida pelos anos
falam sobre a imprecisão das noites
as viagens feitas na leveza daqueles dias
a memória sepultada num hotel à beira da estrada
ela pensava no velho gato de schrödinger
enquanto compunha os jarros selvagens
a lembrança das flores trazidas nos braços
o prazer de ver a lua na janela sobre o lago
um coração de mulher regido pelo princípio de incerteza
tomado pelo exercício matinal do cálculo
a descoberta de uma inequação para inferir
a diferença entre os homens que amara
os avisos colados na porta eram um chamariz
todos se juntavam ali para os ler
e recitavam-nos como se fossem poemas
ou uma oração litúrgica na missa dominical
assim eram amados os editais
mais que todos o de abertura da época de caça
esse passeio tranquilo na memória longínqua
um violino expandia-se sobre a casa
começara um breve gemido no centro da terra
e lentamente as ondas cresceram
tomaram conta da desolação dos quartos
ocuparam as paredes e saíram pelas janelas
o mundo tornara-se uma onda sonora gigantesca
um tsunami a varrer a orla marítima
a noite que cobre de poeira a escuridão da lua
um fogo vindo da areia húmida e vazia
o odor de seda fresca vem dos teus braços
a cintilação da água no regaço azul das mãos
recomeço as contagens e as folhas mortas crescem
são uma ameaça dobrada pelos dedos
o eco de uma súplica desesperada no outono
não vim para medir a terra e construir um padrão
cavalgo os tumultos que o dia traz
e espero o matagal da noite
para compor um rosário de trevas
quero lá saber da batalha de waterloo
quero lá saber de napoleão e de wellington
escreverei apenas sobre o silêncio da montanha
dessa casa de pedra e colmo que me espera
as pernas despidas da mulher que amarei
quero lá saber da batalha de el alamein
quero lá saber de rommel e de montgomery
esperarei por ti no fundo do quintal
que venhas pura e sem biografia
página branca para a mentira do meu amor
fazia girar o pião sobre o cimento
enquanto a mãe cauterizava a ferida
aquela que nasce selvagem no centro das células
inunda o corpo de frias respirações
e traz um grito o troar do cláxon
a viagem vai começar
sem mapa nem bússola ou meta que te aguarde