terça-feira, 26 de junho de 2012

Poemas do Viandante (281)

João Queiroz - Sem título (2005)

281. HAVIA RESTOS DE MINÉRIO PELA SUPERFÍCIE

havia restos de minério pela superfície
sombras soltas e uma vegetação rasteira
o céu acobreado e de longínqua reverberação adoecia
supurava nuvens de cobalto e enxofre
uma promessa de tempestade vinda do norte
sob o silêncio invernoso da tua respiração

naqueles dias entregavas-te às enumerações
de cada coisa fazias uma categoria
e o mundo era então fragmento e restolho
uma impossibilidade que se desfazia no calor da mão

se alguém soluçava ou um animal uivava
abriam-se caminhos de areia e pedra
restos de vegetação seca e sem préstimo

de casa avistava o cume
desenhava trilhos na memória
e assim construía paisagens sempre novas
impregnadas de árvores raquíticas
e sonhava naquele horizonte os cavalos de aquiles
perdidos num devaneio sem razão
ou o passeio dos filósofos na encosta sobre o neckar
onde holderlin o poeta inventou heidelberg

escrevia então longas cartas de amor
não porque amasse mas porque a vista empalideceu
perante a inclemência da paisagem
a encosta íngreme da montanha
e o céu repleto de ameaças furtivas
o odor a terebentina no patamar

piores eram os dias de junho
quando a primavera declinava e morria no verão
naquele calor que desperta o desejo da morte
ao afrouxar a vigilância das células
e infestar cada lugar com o suor das casas
a ameaça de orquídeas envenenadas pelos teus dedos

chegou a hora de subir a terrível encosta
o que nela me espera sabe-o o coração
ainda que uma jura secreta o impeça de o dizer
e assim fico na incerteza inconsolável
na ânsia de descobrir se o mal ou o bem são o meu lote

pego no saco vazio e tomo o caminho
desenhei-o nos dias quentes em que o verão me adolescia

Sem comentários:

Enviar um comentário