segunda-feira, 11 de junho de 2012

O espírito e a obediência

Hans Baldung Grien - Adan (1520-1523)

O acto que está na origem da desordem espiritual do homem foi um acto pelo qual Adão se separou de Deus, de si mesmo e da realidade que o envolvia. Foi a ruptura deliberada da comunhão existencial que dava a Adão a sua plena realidade e o fazia participar naquela que existia à sua volta. Por um acto de puro orgulho, sem o menor traço de sensualidade, de paixão, de fraqueza, de erotismo ou de medo, Adão põe um abismo entre Deus, ele e os outros. [Thomas Merton (1969). Le Nouvel Homme. Paris: Éditions du Seuil, p. 82]

Como compreender a insistência a outrance da Igreja Católica no princípio de obediência? A obediência, entendida como submissão a uma autoridade, é um elemento estrutural de múltiplas instituições. Sem ela, sem a submissão dos cidadãos à autoridade politicamente constituída, um Estado não funciona. Um exército estará condenado à derrota se o princípio de obediência à hierarquia não for seguido de forma indiscutível. Outras instituições, como escolas, empresas, clubes desportivos, etc., só funcionam fundadas, ainda que de forma matizada, no princípio de submissão à autoridade.

Poder-se-ia pensar que todas estas relações de obediência à autoridade são idênticas às relações de obediência que a Igreja Católica exige dentro de si. No entanto, isso não é verdade. Em todas as instituições onde o princípio de obediência tem um papel, ele é sempre, apesar de estruturante, instrumental. A obediência do cidadão à lei, do soldado à hierarquia, dos jogadores ao treinador, dos alunos aos professores, em todos estes casos visa-se sempre outra coisa: a ordem cívica, a vitória militar ou desportiva, a aprendizagem. A obediência no campo espiritual, aquela que é exigida pela Igreja Católica, contudo é um fim em si mesmo e não um mero meio para se atingir alguma coisa..

Só se pode compreender essa obediência, se se entender o que está em jogo. Ao colocar de lado as leituras pueris do mito de Adão e Eva, Thomas Merton, no trecho supra citado, abre um caminho para compreender essa obediência. O pecado original, como ressalta do texto, não tem nada de erótico ou sensual. O que, na mitologia judaica, perdeu o homem foi a revolta e o orgulho. O que significa esta revolta e este orgulho? A perda da verdadeira realidade do homem, a sua diminuição ontológica, o que é figurado por um corpo frágil e mortal, por uma vontade fraca e corruptível. A obediência é o exercício contrário ao acto de orgulho de Adão. Aqui a obediência não é um comportamento estratégico que vise, no fim, uma reintegração no estado anterior à revolta adâmica. A obediência, do ponto de vista espiritual, é símbolo e prática efectiva desse estado que Adão recusou. 

A submissão à autoridade espiritual é o elemento estrutural da viagem do espírito, porque ela é o exercício e a vivência do estado prévio à Queda. Tudo isto não significa que a Igreja Católica não use a obediência de forma instrumental, mas, contrariamente a outras instituições, ela fá-lo porque a obediência à autoridade é o princípio central do cristianismo, cujo arquétipo reside na submissão de Cristo, o Filho, à vontade do Pai, submissão até à morte, e morte de cruz. Isto, porém, só é inteligível a partir da compreensão da Queda adâmica e da perda ontológica que ela significa.

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