domingo, 24 de junho de 2012

Poemas do Viandante (279)

João Queiroz - Sem título (?) (2008)

279. NÃO ERA UM CAOS QUE NASCIA NO CENTRO DA FLORESTA

não era um caos que nascia no centro da floresta
nem um desejo de sangue puro e matinal
o teu corpo de mulher rolado no toldo destas mãos
velhas aspirações de homem solitário
sentado na orla da clareira
à espera de um pássaro ou do rosnar dos cães

se houvesse um espelho na água fria
ainda pensaria em narciso
mas nada por aqui devolve imagem ou som
e as ninfas há muito que partiram
o peso das sombras fazia desabar sobre elas o medo
e o deus cuidadoso recolheu-as em lugar incerto

uma floresta púbere ensombrada pelo sol
uma floresta perto do céu tocada pelos anjos
uma floresta de grifos e anémonas cantada em silêncio
invento pela manhã cada árvore e a sua sombra
desenho ramos e ervas e a terra negra
o fecundo respirar da tua boca
se o corpo se abre no húmus do chão
e o feto do meu amor te infecta
te traz uma doença prolongada e sem esperança
um estado terminal feito de ramos secos
e um barulho de buzinas na estrada ao longe
rio de alcatrão a circundar a floresta
uma raia plástica sem barreiras ou guarda fronteiriço

a estação avança por dentro da sombra
rasga um caminho de terra para trazer as primeiras chuvas
e o homem entregue ao celibato espera 
em cada ruído o sobressalto dos teus passos
o desejo desse corpo virginal
o dia de aleluia inscrito em delfos

os que tracejam caminhos na terra hesitam
todos os cheiros que ali crepitam são-lhes estranhos
uma ameaça de animal selvagem 
uma garra fria e mortal
todas as lâminas que a natureza esconde
a pedra com que david matou golias

é um lugar sem cor nem destino
um manto de vida a esconder a dança da morte
ali poisa o asceta para inventar um deserto
ali estaca o filósofo e desenha uma academia
ali um concílio de poetas faz o elenco das heresias

não era um caos que nascia no centro da floresta
apenas a minha pobreza crescia na vida minguada
e o tempo espairecia na obscuridade
e deus seguia o seu caminho de penumbra
e o amor de uma mulher gritava dentro de mim
e o desespero do mundo era uma paisagem fria de betão
a memória rememorada ao chegar
a entrega do passaporte para nunca mais voltar

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